Se as coisas são inatingíveis… ora!/Não é motivo para não querê-las…/Que tristes os caminhos, se não fora/A presença distante das estrelas! (Mário Quintana)

Revi Inferno no Pacífico, filme de 1968, dirigido por John Boorman e magnificamente interpretado por Lee Marvin e Toshiro Mifune. Dois atores então no auge da maturidade artística. É um filme rico em detalhes, que ultrapassa tempo e circunstâncias da história que conta. Vou usá-lo como referência para refletir sobre uma questão, digamos, trivial: os limites da ação do indivíduo nas correntezas da História. Fácil, não? Para isso, acrescentarei na receita do bolo um querido personagem de histórias em quadrinhos. Vamos ver no que dá.

Breve reconstituição do roteiro. Durante a Segunda Guerra Mundial, um avião militar americano é abatido e o piloto acaba dando numa pequena ilha do Pacífico. Ali já estava um oficial da marinha japonesa, igualmente sobrevivente de batalha. No primeiro momento, desempenham o papel que suas sociedades lhes delegaram: eram inimigos e, como tal, deviam aniquilar-se. Partem para o tudo ou nada, mesmo não havendo, na praia paradisíaca, qualquer base material para tanto ódio. Eram prisioneiros da História, dos sentimentos, interesses e posturas sociais de terceiros.

Passado algum tempo, e apesar da incomunicabilidade verbal, vão percebendo que a sobrevivência era a grande prioridade. Comer, acumular água de chuva em reservatório improvisado, fazer fogo, escapar da ilha. Encontram formas de colaboração. Fabricam uma jangada rudimentar e aventuram-se pelo mar. A cooperação, acima dos espectros do Imperador e do Presidente, vencera o primeiro round.

Chegam a um pequeno conjunto de ilhas, onde encontram os escombros de uma base militar abandonada. Não se sabe se americana ou japonesa. Numa cena arrepiante, cortam suas barbas e se enxergam sem a marca física do isolamento. São apenas homens, de cara limpa, felizes por estarem vivos. Confraternizam com uma garrafa de saquê descoberta num velho armário. Riem, descontraídos. Sem máscaras.

O álcool vai destravando línguas. O japonês folheia uma edição da revista Life jogada num canto. Horroriza-se com fotos de conterrâneos humilhados e massacrados pelo inimigo ianque. O americano solta uma parte dos preconceitos que o treinamento militar e a pedagogia colonialista lhe passaram. É verdade que vocês não acreditam em deus, Jesus Cristo?, pergunta, já meio agressivo. Como falam línguas diferentes, o diálogo é impossível. Entendem apenas o tom violento das palavras. A delicada relação, construída em solavancos, se rompe, substituída pelo silêncio, pela desconfiança, pela sombra da Morte. Sem se despedirem, vão para lados opostos. O ódio aprendido vence o segundo round. Nocaute.

Estaremos condenados à desintegração, à prevalência do egoísmo e da solução violenta para os conflitos? O ser histórico não pode superar a maldição do que herda de tempos passados? Chamo para a pista o simpático Shmoo, criado por Al Capp no final dos anos 1940, coadjuvante em histórias do Li’l Abner (Ferdinando Buscapé).

O Shmoo era um bichinho fofo, que tinha duas características: reproduzia-se rapidamente e tinha prazer em se imolar para atender os desejos das pessoas. Transformava-se, por exemplo, num imenso pernil se um faminto cruzasse seu caminho. Seus olhos podiam prover de botões a camisa velha de um pobre. Sua pele servia para calçar os descalços. Ferdinando e a namorada Violeta encontram uma família de shmoos num vale remoto e a trazem para Brejo Seco (Dogpatch no original), lugarejo miserável, onde o dono do armazém explorava a pobreza vendendo alimentos com preços extorsivos.

Em pouco tempo, os shmoos são milhares e a fome é eliminada, as necessidades básicas do povo atendidas, sem qualquer custo. O comerciante, desesperado pela falência iminente, recorre às autoridades federais, que enviam a Brejo Seco um esquadrão de mercenários para eliminar a ameaça “comunista”. Os bichinhos são fuzilados sem piedade. A paz da miséria e da infelicidade volta a reinar, o comerciante ganancioso está radiante.

Quando tudo parece se encaminhar para um final melancólico, vemos Ferdinando e Violeta caminharem furtivamente nos arredores do lugarejo, com um saco de pano nas mãos. Tinham salvo do massacre um casal de shmoos. Ferdinando os devolve para o vale de onde tinham saído e arremata, com o sotaque caipira que Al Capp reproduzia genialmente nos balõezinhos: “Ainda não estamos preparados para conviver com os shmoos. Na verdade, eles são o nosso próprio planeta, que, se for bem tratado, fornecerá em abundância tudo o que precisamos”. Um ecologista avant la lettre.

Filtrando a maçaroca. Não há um destino manifesto quando nascemos. Certo, em cada época há uma estrutura social, relações sociais e de produção da vida material determinadas por um trajeto histórico que impõe limites imediatos. No entanto, isso é apenas o pequeno quadro de um longa-metragem que está em movimento. Para ficar no exemplo mais elementar, as nações são produto da História, não existiram desde sempre e já dá para perceber os indícios de que, em algum momento, desaparecerão. Os nacionalismos, que geraram guerras e supremacias falaciosas, não são perpétuos.

Como indivíduos, isolados e conformados, não seremos agentes de transformações. Quem transforma a História é o agente coletivo. As guerras particulares entre o japonês e o americano e as desventuras do Shmoo-planeta são possíveis em sociedades que produzem e reproduzem valores egoístas, sovinas, exclusivistas, belicosos, predatórios, sem os quais elas entrariam em colapso. É na luta por mudança estrutural dessas sociedades, com a invenção de novos valores, generosos e fraternos, que se encontra a intervenção possível de cada um de nós. Que cada um encontre o seu espaço e navegue nele, sem pretensões imediatistas. A História, disse Galeano, é uma senhora caprichosa, não aceita aceleração dos tempos. Nesse barco estou desde a adolescência e vou nele até o fim.

Abraço. E coragem.