Em época de Copa do Mundo, Eduardo Galeano pendurava uma placa na entrada de sua casa, em Montevidéu: “Fechada por motivo de futebol”. Era tão apaixonado por futebol que assistia mesmo as partidas mais irrelevantes do torneio. A ele interessavam não as bandeiras, mas as surpresas, os caprichos, os lances bizarros, os pequenos e grandes dramas que se desenrolam mesmo nas peladas de várzea. Se autodefinia como “pata de palo”, o perna de pau clássico, que só seria o último escolhido no par ou ímpar peladeiro. Foi um romântico, revoltado contra a indústria que mercantiliza todos os esportes, mas fiel à memória distante, afetuosa, bela, dos Obdulios, Zizinhos, Maspolis, Pelés, Garrinchas.

Olho em volta e não percebo clima de Copa. Onde as bandeiras, as discussões sobre a escalação da seleção brasileira, o já ganhou ou já perdeu? Posso estar enganado e o interesse vir a galope assim que os jogos começarem à vera. No entanto, há fatores que justificariam o desapego. Eles não são novos. Já não há praticamente titulares que joguem nos clubes brasileiros. A seleção, e ela não está sozinha nisso, se transformou num combinado de clubes europeus, o que une os jogadores é um acidente geográfico-linguístico: nasceram no Brasil e falam português. A cultura futebolística está multinacionalizada, não há um jeito brasileiro de jogar. A execução dos hinos deixou de fazer sentido faz tempo, ou melhor, atende a exaltações nacionalistas anacrônicas. Há mais amor ao esporte numa pelada no Aterro do que na indústria administrada pelo senhor Infantino.

Uma de minhas primeiras lembranças de Copas do Mundo é a do Chile, em 1962. Ainda moleque, misturava a rubro-negrice com o manto canarinho. A delegação da CBD, futura CBF, costumava se concentrar em alguma estação de águas mineira. A paixão clubística criava o cimento que sustentava a seleção e era tamanha que até os treinos eram transmitidos pelo rádio. Eu podia torcer pelo time reserva se este fosse escalado com jogadores do Flamengo. Nesses vaivéns se fecundavam identidades. Tudo isso desapareceu. Ou será que alguém torce pelo Totenham, pelo PSG, Liverpool, Real Madrid?

Não me venham com razões políticas para a aparente indiferença que cerca a atual Copa. Ah, mas o Catar é um país que discrimina mulheres e gays, morreram mais de 6 mil trabalhadores estrangeiros na preparação da infraestrutura para o torneio, não há direitos trabalhistas para os estrangeiros. Verdade, mas desde quando política ficou de fora de estádios e quadras? A Olimpíada de 1936 foi cancelada na Alemanha nazista? E a de 1972, no mesmo país, foi paralisada depois do massacre de atletas israelenses por palestinos? Os Estados Unidos foram punidos pela prática institucionalizada de racismo durante décadas? De volta a seu país, Jesse Owens, negro, ganhador de 4 medalhas de ouro na Olimpíada de 1936, teve que entrar pela porta dos fundos do hotel onde seria homenageado. A Copa de 1978, em plena ditadura argentina, foi cancelada? O chefão da FIFA, João Havelange, discursou, dizendo que “o mundo pode ver a verdadeira imagem da Argentina”. A poucas quadras do estádio do River Plate funcionava um dos piores centros de tortura do regime. Em suma: política é rameira velha no território esportivo. Não explica apatia.

Como em qualquer paixão, incontrolável por definição, há nuances. São conhecidos os casos de presos políticos no Brasil que, em 1970, apoiaram o selecionado mesmo sob o risco de inflar a propaganda do regime, e dos presos políticos uruguaios que, em 1980, acabaram torcendo pela Celeste no Mundialito. Tenho dúvidas se hoje repetiriam o gesto. Não pelas razões da época, mas por esgarçamento do vínculo. Dariam vivas a Neymar e seus blue caps? Trocariam o vamos todos cantar de coração, o sou tricolor de coração, o uma vez Flamengo sempre Flamengo, pelo virundu descaracterizado, fantasia esvaziada da unidade nacional?

Acho difícil ignorar o que vai acontecer nos gramados do Catar nas próximas semanas. Provavelmente assistirei pelo menos as primeiras partidas. Empolgado? Roendo unhas? Gritando gol nas janelas da vida? Não creio. Sou um tipo antiquado, seguidor da seita Reinações nos Campinhos, que não admite profanar o prazer lúdico das chuteiras improvisadas e do drible irreverente pelo exército da bola. Para azedar o cenário, ainda terei que aturar os pachecos radiofônicos e televisivos, sua mediocridade ufanista e sua histeria profissionalizada. Caramba!

Um abraço. E coragem.