Deus não morreu. Está apenas escondido da polícia. (Millôr Fernandes)
No filme mais recente do Woody Allen, Festival do amor, há cenas memoráveis. Uma delas, e cito sujeito às armadilhas da memória, relata um sonho do protagonista, Morty Rifkin. Depois de morto, ele chega ao céu e encontra deus, que tenta um diálogo. Morty rechaça a tentativa e diz: “Não tenho nada a conversar contigo. Fale com meu advogado, ele tem procuração para te processar”. Bem, as palavras podem não ser exatamente essas, mas garanto que reproduzi o espírito da coisa.
Hoje é o primeiro dia do Rosh Hashaná, Ano Novo judaico. De acordo com a tradição, a celebração se estende por dez dias. São os chamados Iamim Noraim, Dias Terríveis. O grand finale é o Iom Quipur, quando os observantes fazem um jejum completo por 24 horas e tentam obter o perdão divino para seus supostos pecados. O castigo em caso de condenação, num tribunal que não admite apelação ou argumentações racionais, pode ser a morte. O clima nas sinagogas é solene e, na época em que as frequentei, sempre me impressionavam as expressões tensas dos religiosos. A imagem de reverência temerosa a uma entidade invisível e com poder absoluto sobre tantas vidas atravessou minha infância e parte da fase adulta. Punição, culpa, vigilância obsessiva. Folcloricamente, ou não, ligadas ao ethos judaico.
Eu repetia mecanicamente a longa sequência de orações em hebraico, sem lhes entender o conteúdo. Uma delas, particularmente envolvente, menciona 53 tipos de infrações para as quais se implora perdão. Não imaginava que os homens podiam transgredir tanto, e aquilo causava medo. Um medo difuso, nem por isso mais ameno. O sentimento de pertencer à comunidade de frequentadores me fazia continuar, ano após ano, renovando os pedidos de clemência, sem questionar a necessidade do ritual.
O fim da infância e de certas ilusões primitivas veio junto com o imperativo de perguntar. De duvidar. Por que um burgomestre cósmico, cujas voz e aparência são inacessíveis, cuja sabedoria tem raízes desconhecidas e autocongratulatórias, de cuja existência a lógica mais elementar sugere duvidar, determina os destinos de milhões de pessoas? Por que o balanço anual das ações humanas não tem a contrapartida, o julgamento do juiz? O escritor Isaac Bashevis Singer, prêmio Nobel de literatura, adorava seu irmão mais velho, I. J. Singer. Quando este morreu subitamente, Isaac ficou devastado. “Foi como se deus tivesse me esbofeteado. Mas o que eu podia fazer? Revidar? Como?”. A impossibilidade do revide fez parte da minha coleção de dúvidas.
Pois neste início de 5783, proponho um jogo menos injusto. Você, impenetrável julgador, vai viver seu momento de réu. Por vaidade tamanha que não admite falhas e é implacável nas suas avaliações. Por insensibilidade cúmplice à fome, à miséria, aos sofrimentos de todos os tipos, às guerras, aos genocídios, às imposturas. Lavando as mãos, olímpico, você não é diferente dos que ferem, matam, torturam, machucam. De suas mãos jorra o sangue de milhões. Por inacessibilidade, negando a Palavra a quem é solitário, escondendo o ombro de quem pede consolo, banindo o abraço e o afeto. Por ser vingativo e vaidoso, como fez quando exigiu que Abraão matasse seu filho Isac, apenas para provar que você é poderoso e ninguém ousa desafiá-lo. Como julgar essas ações, que acumulam oceanos de dor, sofrimento, angústia, morte?
De minha parte, vou me associar ao advogado de Morty Rifkin na peça acusatória. Você, ao contrário de suas vítimas, terá direito de defesa. Para que conste nos autos, admito uma atenuante. Se, mesmo longinquamente, você foi capaz de inspirar quem compôs a melodia do Kol Nidrei, talvez lhe reste um pouco de humanidade, a mesma que por tantas ações e omissões você já provou abominar. Só não lhe convido para comer um rollmops e um pepino azedo à moda de Makow Mazowiecki. Não gosto de falar sozinho enquanto saboreio meus petiscos favoritos. Porque você, definitiva e eternamente, não existe.
Aos amigos que ainda conservam intactas as esperanças de mudanças, que dependerão de gestos concretos e envolvimento, meu desejo de que tenham um ótimo 5783. A gut ior! Shaná tová! Anyada buena i dulse!
Abraço. E coragem.