Tem peixe na rede! (Valdir Amaral, locutor esportivo)
Semana passada fiz um passeio por memórias sobre o rádio, cuja primeira transmissão no Brasil completou um século. Elas, no entanto, ficam mancas se eu ignorar o papel que as transmissões esportivas tiveram no meu imaginário futebolístico.
Nasci depois do Maracanazo, embora seja suavemente obcecado pelo gol de Alcides Ghiggia e a vitória da Celeste Olímpica na Copa de 1950. Li e ouvi muito sobre o jogo. Cheguei a procurar, e encontrei, um livro que registrasse a sensação dos uruguaios depois daquela vitória imprevista (a obra-prima Los laberintos del caracter, do jornalista Franklin Morales). Uma partida de futebol que combinou excitação, euforia, soberba, drama, decepção, depressão, surpresa, e teve em Obdulio Varela, capitão da Celeste, o grande personagem. Tragédia para uns, celebração catártica para outros.
Naquela época, a transmissão dos jogos era dividida por dois locutores, cada um deles responsável por um dos tempos. Antônio Cordeiro e Jorge Curi narraram a final da Copa na rádio Nacional, e coube a Curi descrever, no segundo tempo, o lance que terminou com o gol de Ghiggia, num chute rasteiro, meio sem ângulo, que surpreendeu o goleiro Barbosa. O arqueiro virou bode expiatório da derrota, numa condenação pública que o acompanhou por décadas. “Sou o único brasileiro condenado a prisão perpétua”, revoltava-se, melancólico, Barbosa.
Não conheci as transmissões de Antônio Cordeiro e Ary Barroso, mas não faltam histórias sobre elas. Ary, por exemplo, flamenguista fanático, tocava uma gaitinha quando narrava um gol. Dizem que inventou esse expediente porque, em seu tempo, não existia cabine com isolamento acústico. Ele ficava praticamente no meio da torcida durante a narração. Quando alguém marcava um gol, a algazarra era tamanha que os ouvintes não entendiam o que estava acontecendo. A gaitinha foi o jeito de associar som e fato. Ficou famoso pela parcialidade das transmissões. Cada vez que um jogador adversário do time rubro-negro atacava com perigo, Ary lascava: “Ih, não quero nem ver!”.
O primeiro locutor que acompanhei foi Oduvaldo Cozzi. Elegante, com vocabulário rico, culto, incapaz dos ataques histéricos dos profissionais medíocres de hoje. Não consigo imaginá-lo sem terno e gravata, comprometido que estava apenas com o respeito aos ouvintes e à narração fidedigna dos jogos.
Meu time de locutores se completa com Doalcei Bueno de Camargo, Orlando Batista (único negro destacado nessa área), Jorge Curi (de fôlego infinito) e Valdir Amaral. Valdir criou bordões inesquecíveis, um deles imagem poética do estádio em fim de jogo: “Está deserto e adormecido o gigante do Maracanã”. Quem foi ao Maracanã quando havia arquibancadas, sabe a força dessa descrição, especialmente quando seu time perdia. A noite caía triste e a solidão da derrota nos acompanhava, rascante, na volta para casa. Ao lado deles, a voz, o temperamento e a coragem do João Saldanha, comentarista sem rabo preso, grande contador de causos e conhecedor dos subterrâneos do futebol. Como fundo musical, o jingle: “Quem gosta de cerveja, bate o pé, reclama, quero Brahma, quero Brahma!”.
Nem tudo eram flores. Existiu um elemento, Mário Vianna, ex-juiz de futebol, que virou comentarista de arbitragens. Truculento, ignorante e, para adornar o bolo, racista. Duas histórias. Na Copa de 1954, na Suíça, o Brasil perdeu da Hungria, que o Nelson Rodrigues considerava a melhor seleção de todos os tempos. Houve um tremendo sururu quando o jogo terminou, envolvendo os 22 jogadores. Mário Vianna invadiu o gramado e, espumando, gritou que o juiz inglês era cúmplice de um “complô comunista” contra o Brasil. Foi Bolsonaro antes do Jair. Curiosamente, soube-se que o árbitro era realmente filiado a um partido político. Só que ao Conservador… De outra feita, ofendeu um juiz israelense, regurgitando que “além de judeu, era ladrão”. Sempre que sua imagem colérica me aparece na memória, lembro do personagem Carlos Vou Dar Porrada Maçaranduba, da turma do Casseta & Planeta.
Bem, está na hora de desligar o radinho Spika, que me acompanhava no cimento agregador do Maracanã. Velho hábito de geraldinos e arquibaldos, registrado pelas câmeras memoráveis do Canal 100 e que já deve estar extinto. Por artes da feitiçaria do tempo, ouço ao longe o toque de silêncio do Edifício balança mas não cai e, sob o patrocínio dos meus afetos e saudades, convido todos para a leitura da semana que vem.
Abraço. E coragem.