Esse programa pertence a vocês! (da música que introduzia o programa César de Alencar, na rádio Nacional)
O bloco pesado de ferro fundido, cercado de botões, pinos e um mostrador esverdeado, jazia na cômoda. Originalmente destinado a radioamadores, não era o rei da voz mas imperava naquela casa de sentimentos muitos e recursos poucos. O rádio da família acordava com válvulas que incandesciam. Sintonizar as estações era uma competição contra chiados e invasões de ondas sonoras misteriosas, o treino nos fazia ganhar sensibilidade nos dedos. Senhoras e senhores ouvintes… A primeira transmissão de rádio no Brasil acaba de completar um século e meu Halicrafters, do alto de seus oitenta e tantos anos e restaurado, é uma testemunha ocular/afetiva dessa história. Com ele, imaginei personagens, descobri músicas, ri de manducas, tancredos e trancados, marquei golaços com pernas alheias, perguntei ao João.
Rádio sempre foi, sobretudo, território da imaginação. Não à toa, as bancas de jornais dos anos 50 vendiam um semanário, a Revista do Rádio, com reportagens e fotos de cantores, atores, locutores. As vozes, então, revelavam corpos. Aqui, nessa penteadeira chipandelle, me faço bonita, dizia sorridente a cantora Favorita dos Marinheiros, aproveitando para fazer merchandising do Leite de Rosas, o preparado que dá it. A falsa rival, Favorita da Aeronáutica, exibia o sumiê onde fazia as siestas, sem deixar de lado o talco Cashmere Bouquet, perfume de prazer. E a Candinha escancarava os bastidores, mexeriqueira, hein? O jingle, cantado pela Linda Batista, ou seria pela Dircinha?, reforçava: Revista do Rádio,/ que toda semana eu espero/Revista do Rádio/Ei, jornaleiro/é essa que eu quero.
O Menino não era chegado às novelas, mas elas reverberavam forte na atmosfera da vila. Audiência maciça. Caso famoso foi O direito de nascer, dramalhão que foi ao ar durante inacreditáveis três anos. Época em que bebês sem conta acabaram registrados como Albertinho Limonta, figura central da trama. A turma da fuzarca logo apelidou a coisa como O direito de encher. Tempos ingênuos.
E os reclames? Sem os recursos visuais que a TV trouxe mais tarde, a criatividade gerou pequenas obras-primas para vender de tudo. São jingles e slogans que atravessam gerações. Se a lâmpada queimar, não adianta reclamar nem bater o pé, o que resolve é ter sempre à mão lâmpadas GE. Melhoral, Melhoral, é melhor e não faz mal. Fimatosan, melhor não tem, é o amigo que lhe convém. Colírio? Moura Brasil!! Ele era meu chefe… hoje é meu marido, eu passei a usar Cilion. A Casa Garson só vende o que é bom. Pílulas de vida do doutor Ross, fazem bem ao fígado de todos nós. Se a criança acordou, dorme, dorme, menina, tudo calmo ficou, mamãe tem Auris Cedina. Brylcreem, apenas um pouquinho, Brylcreem, você irá brilhar, Brylcreem, é o melhor caminho, para mil pequenas conquistar. Dura lex, sed Lex, no cabelo só Gumex.
As rádios faziam dobradinha com as chanchadas da Atlântida quando o assunto era carnaval. Lá por dezembro, as chanchadas começavam a caitituar marchinhas, para gravar na memória dos foliões, e as rádios encaixavam tudo nos programas de auditório. Fanzoca do rádio, gravada em 1958 pelo palhaço Carequinha, desenha bem o sincretismo (com minhas escusas pela letra “inadequada” para os dias de hoje): Ela é fã da Emilinha/Não sai do César de Alencar/Grita o nome do Cauby/E depois de desmaiar/Pega a Revista do Rádio/E começa a se abanar/É uma faixa aqui, outra faixa ali/O dia inteirinho ela não faz nada/Enquanto isso na minha casa/Ninguém arranja uma empregada.
Avançando um pouco no tempo, viajo até a rádio Jornal do Brasil, que, nos anos 1970, trazia Sessenta minutos de música contemporânea. Ali, fomos apresentados aos grandes grupos do rock progressivo. Blood, Sweat and Tears e Emerson, Lake and Palmer na veia.
Ao terceiro sinal… Os veteranos lembrarão que assim começava a locução da hora certa na Rádio Relógio. Entre duas delas, algumas pílulas, digamos, culturais dignas do Almanaque Capivarol. Essa programação inspirou a criação do personagem Sandoval Quaresma, vivido pelo Brandão Filho, na Escolinha do Professor Raimundo. Sandoval vivia grudado na Rádio Relógio, decorava as gotas de cultura inútil, mas era incapaz de ir além de nomes e datas. Decoreba profissional. Brandão, para quem não lembra, fazia o Primo Pobre noutro programa antológico do rádio, o Balança mas não cai. O Primo Rico, ora vejam só, ficava por conta do Paulo Gracindo.
Não sou filho ingrato. Permaneço fiel ao rádio, embora a poucas estações FM. O dial fica estático na programação clássica e de jazz da MEC, que anda com acervo bem pobrezinho, vítima provável da firma de demolição que administra o país. Por falar nessa malta, convoco o Samuel Correia, da estridente Patrulha da Cidade na velha rádio Tupi. Quantos de nós não gostariam de, à moda do Samuca, algemar o chefe da quadrilha, fichá-lo por vadiagem e trancá-lo na gaiola insalubre da Invernada de Olaria? E corta pros nossos comerciais.
Abraço. E coragem.