A sad fact widely known
The most impassionate song
To a lonely soul
Is so easily outgrown
But don’t forget the songs
That made you smile
And the songs that made you cry
(The Smiths)
Das cismas e manias que carrego vida afora, uma é não reler livros que com a distância do tempo podem perder a magia. Nunca reli A Pequena Fadette de George Sand, que marcou minha infância. Nem Os Meninos da Rua Paulo, que me fez desaguar de emoção. Muito menos O Estrangeiro de Camus, que li concomitantemente com um amigo de sala, com quem ainda mantenho contato. Ele antes da pandemia me falou: ”Esse livro devia ter uma restrição, adolescentes não deviam lê-lo”. Aqui explico: Ficamos os dois tão mexidos com a obra que ela decretou, ali, o fim da nossa Idade do Ouro juvenil. Percebemos, eu carioca, ele paulista, em terras soteropolitanas, que ser estrangeiro independe de estar em outro país. Éramos esquisitos, é verdade. Hoje ele é um cineasta bem sucedido e respeitado, mas fui testemunha do garoto de longos cabelos, all star surrados, que mordia a caneta até quebrar. Eu não era muito diferente. Usava jeans rasgados antes de virar modinha, era a nerd louca que fazia historinhas em quadrinhos usando os colegas de sala como personagens, de uma acidez que nem Sonrisal resolvia e colava minhas obras na hora do recreio na parede da sala de aula. É certo que fazia sucesso, mas os atacados, movidos pelas paixões adolescentes, geralmente gente com quem eu tinha contas a acertar, me odiavam. Hoje olho para trás e até rio, porque essa foi a forma eficaz que encontrei de vencer o bullying, conseguia ser pior que os autores das chacotas destinadas a mim. O que pensando bem, é feio pra caramba. Esse Marte em escorpião sempre foi uma faca de dois gumes na minha vida. Melhor botar a culpa nos astros que no meu gênio ruim e vingativo. Outra coisa que não faço é ver filmes baseados em livros que tenho apreço. Vou adiando até que não dá mais. Foi assim com a Casa dos Espíritos, por exemplo. Acho sempre que o elenco escolhido não tem nada a ver com os personagens que tomaram corpo na minha imaginação. Via de regra fico irritada e quase sempre termino o filme com a impressão de que o diretor e o roteirista banalizaram e traíram a obra.
Fernando Pessoa, com seu heterônimo Bernardo Soares, no Livro do Desassossego, bem traduziu o que me move a isso, quando fala do seu primeiro contato com os sermões do Padre Vieira: “Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me tem feito chorar. Lembro-me como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa seleta, o passo célebre de Vieira sobre o Rei Salomão. “fabricou Salomão um palácio” … E fui lendo, até o fim, trêmulo, confuso; depois rompi em lágrimas felizes, como nenhuma felicidade me fará imitar. Aquele movimento hierático, da nossa língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de página porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais. – tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei hoje, relembrando, ainda choro. Não é- não a saudade da infância, de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfônica.” Os únicos livros que releio, e acontece sempre a cada mudança de rumo de vida, são Cem Anos de Solidão, do Garcia Márquez e Terra dos Homens, do Exupéry. Ali não tem erro, as duas obras sempre apresentam novas nuances a cada fase que as reencontro. Mas não trazem o impacto da primeira vez. No filme As Invasões Bárbaras, quando o Remy, professor marxista (é uma continuação do filme O Declínio do Império Americano, que assisti no início da faculdade, daí meu carinho) vê o novo mundo neoliberal vencendo, na figura do filho que é tudo o que ele sempre lutou contra, um capitalista convicto e que, por ter dinheiro, vai lhe dar uma morte digna, porque a vida é filha da puta mesmo, tem um momento que a filha junkie de uma colega de trabalho e ex-amante, a pedido de seu filho , vai lhe aplicar heroína para aplacar as dores do câncer. O filme todo é maravilhoso, mas faço esse recorte: Ela, ao dar-lhe a picada, diz que os viciados vivem em função dessa primeira emoção. E que ela não volta. Todas as vezes que um heroinômano se droga é em busca dessa sensação proporcionada pela primeira dose, por isso ela é chamada por eles de “Cavalgada no Dragão”. Nunca usei heroína, mas tenho isso em relação aos livros. Esse sentimento primeiro, essa emoção que te tira do chão, quando vc desconhece a obra e o autor e fica maravilhado com ela, é a cavalgada no dragão no mundo literário. Soube que vão filmar Cem Anos de Solidão e combinei comigo mesma que não assistirei tão cedo.
Saindo da literatura e indo para o cinema de entretenimento, e vocês vão rir disso, fiquei meio cismada de assistir Eduardo e Mônica. Poxa, de Gabo pra Renato Russo mana…Sim, de Gabo pra Renato Russo. Voltemos a 1986.Eu era uma garota de 15 anos quando foi lançado o Disco Dois. Tempo Perdido, Índios e Eduardo e Mônica foram minha trilha sonora durante um ano inteiro. Legião Urbana falava coisas que eu gostaria de ter falado e musicado, no meu mundo adolescente. Um ano depois eu conheci o amigo citado acima, o do Estrangeiro e ele me apresentou Janis, Hendrix, o rock inglês da época, os Titãs, Garotos Podres e outras paradas. Comecei a achar Cazuza muito mais solar e interessante que Renato. Mas aquele 1986 não saiu de mim. Tanto que uns 5 anos depois, já terminando a universidade, o destino (na verdade um amigo DJ, que me chamou numa boate e estava com o vocalista do Legião) me colocou na mesma mesa que o Renato Russo. Meu amigo precisou voltar para as pick-ups e disse:” Céu, faz companhia pra ele”. Carioca, safa, não sou de dar moral pra famoso. Então a cena que se desenhou foi: Eu de frente para o Renato, tomando uma vodka e ele sorvendo um copo de uísque. Ele agia como se eu não estivesse ali e eu na mesma toada. Eram dois desconhecidos, colocados forçosamente num mesmo espaço, que não tinham o que falar. Ele provavelmente não, mas eu me fazendo de blasé só lembrava da garota de anos atrás que se emocionava com sua música. Queria ter falado para ele que meu amigo de adolescência, vítima de um acidente de carro, foi enterrado ao som de Tempo Perdido. Queria ter dito que “Nos deram espelhos e vimos um mundo doente, tentei chorar e não consegui” dizia respeito a ele, porque eu ao ouvir a música a primeira vez chorei baldes. Só que aquele homem meio esverdeado (sim, sim, era meio verde, na época já era soropositivo), blasé por demais, me tolheu. E só me restou dar um tchau com cara de “ainda bem que um gatinho tá me chamando pra me livrar de vc” e cair na pista dançando ao som do The Smiths. Foi assim, enganando a mim mesma, me convencendo que assistir um filme comercial sobre uma música do Legião era uma enorme perda de tempo, que encarei a película. E ao final do filme, eu entendi minha resistência. E sim, desaguei. Porque vi na tela a adolescente que eu fui. E aquele momento tão meu, que não compartilhei nem com o autor da música, se presentificou.
Nascida no fim de 1970, uma infância passada na ditadura militar, a minha geração não era a do Renato, que pegou a barra pesada na adolescência e brigou para o Brasil se redemocratizar, nem a dos meus pais, que perdeu amigos e parentes na luta contra o governo dos Anos de Chumbo. Éramos a princípio espectadores das mudanças. Para ser sincera, eu não estava tão ligada na política. Como eu, grande parte dos meus contemporâneos. Estava muito mais preocupada com a AIDS, sinceramente. Quando falo para minha filha de 16 anos do horror que foi a chegada daquele vírus, um professor de Geografia que eu amava foi uma de suas primeiras vítimas, amigos dos meus pais se foram e tudo isso no período da minha puberdade, uma doença mortal sexualmente transmissível que não tinha cura, ela não tem ideia do que representou. Aí só de sacanagem, na adolescência dela vem uma pandemia em que se pegava a doença tendo um simples contato com um contaminado e que até um ano atrás não tinha nem vacina, para me desmoralizar. Na escala de tragédias da humanidade, ela ficou dois anos presa comigo, o pesadelo de qualquer adolescente de 13-14 anos. O que pode ser pior que isso? Enfim, a maior parte de nós era atormentada pelo medo de pegar HIV, liberdade sexual passou longe da gente. Também não éramos politizados como a geração anterior, não pegamos em armas nem vivenciamos uma rebeldia que podia levar aos porões da ditadura. Nem hippies, nem revolucionários. Tínhamos, porém, uma ideia do privilégio que era votar em presidente pela primeira vez depois de anos de regime militar. Votei no Lula, em 1989, no primeiro e no segundo turno. Minha filha vai viver isso, seu primeiro voto vai ser no Sapo Barbudo, que até agora aponta como o favorito na corrida presidencial. Na minha vez o Collor ganhou e tive que entubar. Já era bem esperta para não cair nos Caras Pintadas em 1992, achava que era manipulação da mídia. Sabia que independente de qualquer movimento o homem “Daquilo Roxo” ia cair porque a República de Alagoas tentou dar um passo maior que as pernas. Já não interessava ao sistema aquela gente. Esse é um resumo, bem simplista, do que foi a minha geração.
Ao ver o filme, recheado de músicas daquela época, acabei lembrando de uma pá de coisas. Tinha um mundo pela frente. Possibilidades se abriam, a vida era uma página em branco. Então fiquei mexida com isso, nem eu sabia que tinha saudades daqueles tempos. Era também um mundo que se transformava rapidamente. Queda do Muro de Berlim, a globalização saindo da teoria e se transmutando numa realidade na qual eu estava inserida, revolução tecnológica. O mundo deu uma virada nos últimos trinta anos em que longe de me sentir sujeito da História é como se eu tivesse sido arrastada por ela. Sou da época do Atari e ser campeã de River Raid só me torna velha diante do agora. Não tenho manhã para crescer financeiramente nesse admirável Mundo Novo, minha cabeça ainda teima em ser analógica. Bem que tentaram dar um nome para minha geração, a galera que assistia Speed Racer na infância, que consultava enciclopédias, que chacoalhava ao som de B 52 nas danceterias da vida, que usava cortes de cabelos e roupas de gosto duvidoso na adolescência, como uma saia balonê dourada e um scarpin branco, a bordo de um vistoso mullet, de Geração X. Mas aí vieram os Y e os Millennials, que tem um povo que aos 30 anos já tá bilionário. Somos uma geração entre gerações. Chatos para os mais novos, alheios e um pouco alienados para os mais velhos. Sobreviventes da bala soft e de passeios aboletados na traseira de Caravan, sem cinto de segurança.
O mundo, porém, independente das sofisticações técnicas, caminha para trás. Andou rolando nas redes vídeos do Cazuza e do Renato Russo falando sobre autoritarismo, fascismo e tal. Eles não sobreviveram para ver os nossos anos 20 tão parecidos com os anos 20 do século passado. Depois do filme, fui olhar quem era o Eduardo e a Monica da música, sabia apenas que existiam e que era um casal amigo do compositor. Leonice, a Mônica da música, é artista plástica, Fernando Coimbra é o Eduardo. O casal está junto há 42 anos. Os dois conheceram Renato lá atrás, quando o músico fazia shows no Colina, um conjunto de prédios, na Asa Norte de Brasília, onde moravam professores da UNB e que no fim dos anos 70 uma turma de adolescentes se reunia para fumar maconha, encher a cara de vinho, falar de rock e ensaiar. Lá nasceu o rock nacional dos anos 80, inicialmente com uma banda chamada Aborto Elétrico. Paralamas, Plebe Rude, Capital Inicial e Legião Urbana começaram ali. Era o som underground de uma juventude que morava na cidade que era palco do governo militar. Foi nesse contexto que Renato ficou amigo do casal. Muito da música é criação, mas eles foram os inspiradores.
Fernando Coimbra, o “Eduardo”, é filho do embaixador Marcos Coimbra e vem a ser enteado de Leda Collor, irmã vocês sabem de quem. Seu pai foi um dos articuladores da campanha do Collor, em 1989, o estrategista principal. Lembram daqueles escândalos relacionados à vida pessoal do Lula, como o da mãe de sua filha Lurian que foi a TV falar que Lula pediu que ela abortasse a criança??? Adivinhem de quem foi a ideia e orquestração??? Pois é. Envolveu-se em vários escândalos, ligados aos rolos do PC Farias. Irmão de Marcos Coimbra, sociólogo, presidente do Instituto Voz Populi, Fernando seguiu a carreira diplomática e serviu em vários países. Sobre o seu posicionamento político, o que posso falar é que quando era embaixador no Quênia, em 2019, foi duramente criticado na Cúpula de Nairobi, na qual foram comemorados os 25 anos da Conferência Internacional da População e Desenvolvimento do Cairo, por um documento apresentado por ele, que nada falou sobre direitos humanos, um dos pilares do programa de ação dessa conferência, muito menos de desigualdade social e da pobreza que grassa no mundo. Limitou-se a fazer uma pregação antiaborto, mandando para a puta que pariu os acordos intergovernamentais do qual o Brasil é signatário, que reconhecem o aborto como um problema de saúde pública e pedem a revisão de leis que punem a interrupção da gravidez. Em 2022 foi indicado pelo Bozo para o posto de embaixador no México, onde está no momento. Pois é, essa o Renato Russo não poderia prever, Eduardo se transformou num bozolóide.
Porém, nem tudo é tristeza. Renato usou licença poética para falar dos gêmeos, filhos do Eduardo e da Mônica, mas na vida real o casal só teve uma filha. O líder da Legião Urbana era louco pela garota, ia buscá-la na escola, onde rolava um ajuntamento de gente para ver o “tio famoso da Nina”. Fui dar um rolé no Instagram dela. É artista plástica, tem uns trabalhos bem bacanas e participou de duas cenas do filme, numa delas era uma das performers da “festa estranha com gente esquisita”. Corajosamente descasca o Bolsonaro, chama de fascista e o caramba. Seu sócio é um gay que anda com roupas femininas e numa das fotos carrega um cartaz com a inscrição:” pelo direito de andar amado!# ele não!” Se a música Tempo Perdido fala da angústia que acomete os jovens de estarem desperdiçando a vida, minha vontade é de falar para Nina:” nada melhor que estar do lado certo da história, certeza que seu tio ia ter orgulho de você nesse momento tão duro do nosso país. Você não está desperdiçando a vida…nem o voto”. Era só isso mesmo.