Quando li Maus, muitas luas atrás, deu uma sensação de desconforto. Art Spiegelman, filho de sobreviventes do Holocausto, desenhou em quadrinhos uma história baseada em conversas com o pai e ambientada, essencialmente, no universo sombrio dos campos de concentração nazistas. Todos os personagens, e aí o desconforto, tinham corpos humanos e rostos de animais. Judeus eram ratos, nazistas eram gatos, poloneses não-judeus eram porcos. A originalidade da abordagem rendeu a Spiegelman um inédito prêmio Pulitzer para quadrinhos, em 1992.

A ousadia do quadrinista não foi sem custos. Na Polônia, exemplares do livro foram queimados na frente da casa do editor. Na Rússia de Putin, foi banido sob a alegação de que trazia uma suástica na capa(!). No início deste ano, uma junta escolar no estado do Tennessee vetou-o nas escolas públicas, alegando que reproduzia cenas de nudez e usava palavrões.

Sei que o genocídio judaico na Segunda Guerra Mundial é terreno delicado. O sofrimento de milhões de pessoas criou uma espécie de autocensura, que costuma submeter quem deseja usá-lo como tema literário, cinematográfico ou de obra de arte, a um padrão estético conservador, retilíneo, inegociável. Filmes como A vida é bela e O trem da vida, apesar de não terem finais felizes, foram duramente criticados por establishments variados pois não seguiam os modelos de praxe. A imaginação é substituída pelo olhar monocromático.

Spiegelman menciona o caso do Tennessee como indício de que os Estados Unidos estão na fase terminal de uma guerra cultural. Os inimigos principais, ocupando o lugar dos judeus na era nazista, agora são imigrantes, negros e homossexuais. “São tempos muito assustadores nos Estados Unidos. Nunca vivi nada tão regressivo”, observou, numa entrevista dada à Folha de S. Paulo.

Lendo a entrevista, lembrei-me de uma história ocorrida 56 anos atrás no sul dos Estados Unidos. Um clássico casamento entre piromania, ignorância e fúria censória. John Lennon havia declarado, na Inglaterra, que “nós (os Beatles) somos mais populares do que Jesus neste momento”. Foi o suficiente para várias rádios norte-americanas convocarem os jovens a fazerem fogueiras com os discos dos Beatles. As brasas da intolerância arderam nos neurônios juvenis. George Harrison, com seu jeito discreto, não resistiu e ironizou: “Não tem problema. Para queimar os discos, eles antes precisam comprá-los”.

Somos pós-graduados em censura. As várias ditaduras fartaram-se de mutilar textos, calar vozes, rasgar obras de arte, impugnar imagens. Durante a última ditadura, aquela festejada pelo Salnorabo (obrigado, Sérgio Rodrigues), os registros renderam volumes de Febeapá. Foram censurados jornais, revistas, novelas, músicas, peças de teatro, filmes, livros. Em Niterói, a polícia apreendeu cópias da encíclica papal Mater et Magistra. “Material subversivo”. No Teatro Municipal de São Paulo, a peça Electra foi considerada “subversiva” e agentes do DOPS tentaram prender Sófocles. Falecido em 406 a.C. A Delegacia de Costumes de Porto Alegre mandou apreender o livro O amante de Lady Chatterley. E por aí vai.

Estou terminando de ler um pequeno livro do argentino Alberto Manguel, sobre bibliotecas em geral e livros em particular. Refletindo sobre a importância, ou falta dela, da literatura nas sociedades, ele faz uma ponderação importante: “É claro que a literatura pode não salvar ninguém da injustiça, das tentações da cobiça ou das desgraças do poder. Mas algo nela deve ser perigosamente eficaz, já que todo governo totalitário e todo alto funcionário ameaçado tentam eliminá-la queimando livros, proibindo livros, censurando livros, aplicando impostos sobre livros, limitando-se a fazer de conta que respeitam a causa da alfabetização, insinuando que a leitura é uma atividade elitista”. Soa familiar? Traz à tona personagens como a Delirante das Goiabeiras, o Pastiche de Goebbels, o Kafta Vagabundo, o Tchutchuca Neoliberal?

Na nossa guerra cultural, e não tenho dúvidas de que estamos metidos numa, enfrentamos um inimigo organizado, engajado, preparado para ficar entre nós por um longo tempo. Domina a fronteira digital, onde se jogam batalhas decisivas no confronto. Ataca o conhecimento, a ciência, o direito à dúvida, o saber trazido pela memória acumulada nos livros. O sociopata sintetizou muito bem o obscurantismo em 2020, quando disse, a respeito dos livros didáticos: “Os livros hoje em dia, como regra, é um amontoado… Muita coisa escrita, tem que suavizar aquilo”. Pensar dá trabalho. Tarefa impossível para quem dá sinais evidentes de déficits cognitivo e civilizatório.

Marcos Nobre, professor da Unicamp, acaba de publicar livro sobre o governo atual. Concordo com algumas de suas conclusões. Reproduzo duas delas. “O campo democrático continua jogando amarelinha eleitoral enquanto Bolsonaro monta o octógono do MMA do golpe” e “Perdendo ou ganhando a eleição em 2022, o bolsonarismo já ganhou. Derrotá-lo será tarefa para muitos anos”. A encrenca não termina, positivamente, em outubro.

Abraço. E coragem.