Meu sonho nesta quarta de madrugada tinha uma cena em que eu via o Mico tocando piano. Mico era como os familiares e amigos se referiam ao médico escritor Moacyr Scliar, e ele gostava de ser assim chamado. Creio que nunca tocou piano, mas no sonho era ele o pianista, e o resto diurno poderia ser que na noite anterior eu tinha lido numa rede social uma postagem do professor José Vicente Tavares sobre o amigo escritor. Para famílias de imigrantes judeus, para todo o Bom Fim, ter um escritor era motivo de orgulho. O piano foi o primeiro instrumento que conheci, e lembro da primeira música que tocou meu coração, sobre a qual já escrevi, que foi “Ai Lili Ai Lili ai Lou”. Se Scliar não tocou piano, tocou a minha alma com suas palavras, como as de milhares de leitores aqui e no mundo. Tocar a alma lembra Shakespeare no seu “Hamlet”, no III ato, cena 2. Seus amigos estavam desconfiados de que Hamlet sabia algo mais sobre como seu pai fora assassinado. E ele percebe que seus velhos amigos desejam extrair dele seus segredos. Então se escuta som de flauta, e o príncipe propõe a um deles que a toque, e um diz não saber, mas Hamlet insiste, dizendo que é fácil. Frente a nova recusa, exclama: “Pensais que sou mais fácil de tocar que uma flauta?”. Tocar a alma, ser tocado em sua alma é o que ocorre nas relações humanas, na vida do analista e analisando. Tocar a alma com suavidade e delicadeza é uma arte para se aprender sempre.
Foi alegre vê-lo tocando piano no sonho, e eu já tinha ido dormir alegre com o sentimento de que o mundo estava se dando conta do perigo que corre a frágil democracia brasileira. Senti a falta do Scliar na luta pela vacina contra o negacionismo no país, foi uma vergonha e tristeza pelos doentes e mortos. O País está vendo sua Amazônia sendo destruída, gente sendo assassinada, a fome voltou e atinge mais de trinta milhões de brasileiros. Entretanto, começa haver um sentimento de alegria com o dia dois de outubro, a festa da democracia que está sendo ameaçada.
Segui pensando no sonho, em que o Mico tocava piano, foi um visitante noturno, que ressuscitou, e fui dormir imaginando que a esperança do país estava sendo ressuscitada. Há um esforço de recuperar a alegria do sonho, não só noturno, como o sonho de um país mais justo. Acordei às quatro da madrugada e anotei logo a frase: “Eu vi o Mico tocando piano”.
Sempre amei os sonhos, sejam os sonhos noturnos como os diurnos, e poucos livros são mais fascinantes que “A interpretação dos sonhos”, de Sigmund Freud, que tinha em José do Egito uma referência. O José dos sonhos do Faraó foi uma das inspirações de Freud, e nesse livro se estuda o primeiro modelo de aparelho psíquico, da realidade psíquica, em que psique é alma em grego. Admiro os sonhadores, e o Mico sonhou sempre com um amanhã melhor na saúde pública, numa saúde melhor para o povo. Integrou movimentos judaicos socialistas como várias pessoas do Bom Fim, defendeu a liberdade e a democracia, assim como foi adversário das ditaduras. Em muita coisa segui seu exemplo, bem como de minhas irmãs, e aprendi desde cedo a gostar de debates, a conviver com o contraditório.
Hoje a nação dilacerada está cansada de guerras, de ser dividida pelo ódio, de tantos mortos e pesadelos. É hora de cantar e dançar com a volta de sonhos alegres.