O Jogo do Bicho é algo tão entranhado na cultura brasileira, que deveria ser considerado patrimônio nacional, assim como o samba, o acarajé e as rodas de Exu. Quem nunca sonhou com uma pessoa desagradável e não fez sua fezinha na cobra? É algo tão presente no cotidiano brazuca que tem até lendas familiares. Minha avó materna encontrava-se em situações de apuros financeiros e viu no seu quintal um cachorro correndo atrás de uma borboleta. Apostou o pouco que tinha, valendo-se da máxima brasileira, já que estou fufida, fudida e meia e tirou dinheiro grande, salvando-se naquele momento de um sufoco. Ou a avó de amiga que morreu, o marido da prima dela jogou o número da sepultura e acertou na cabeça. Hoje você pode carregar o seu pré-pago também nos pontos de jogos, todas as operadoras. São muitas facilidades. Tantas que minha filha outro dia ficou boquiaberta ao saber que era ilegal. Perguntou-me chocada: ”Vc tá me falando que aquela tiazinha maneira lá da banquinha da esquina é contraventora?”  É daquelas coisas que só no Brasil mesmo. Sua origem parece até pueril, criada pelo Barão de Drummond em 1892, para salvar o antigo Zoológico do Grajaú. O apostador escolhia ente 25 animais do zoológico numa loteria. Entre idas e vindas, acabou por cair na ilegalidade em 1941, por meio da Lei de Contravenções Penais que proibiu a realização de todos os jogos de azar no país.

Claro que a jogatina não parou. O que houve foi uma competição animalesca entre os banqueiros, para usar uma palavra que orne com a situação. O objetivo era concentrar os pontos de jogos em torno de alguns donos. Lei da Selva. Pistolagem rolando solta. Até que nos anos 60 coube a Castor de Andrade botar ordem na putaria. Aí entra Antonio Salamone. Esse senhor nada mais era que um dos chefes da temida Cosa Nostra, da Itália. Em 63, depois de sua organização matar 7 carabinieris, num atentado a bomba em sua terra natal, Salamone veio se refugiar no Brasil. No Rio conheceu Castor, ainda na flor de seus 36 anos e dessa aliança surgiria a máfia tupiniquim. Salamone ganhou um emprego nas Tecelagens Bangu, negócio de fachada da família (os pais de Castor estavam no jogo do bicho desde os anos 40) e de quebra recebeu a cobertura da ditadura brasileira. Por influência de Castor, apesar de condenado nos EUA e na Itália, foi-lhe concedida, pelo Ministro da Justiça Armando Falcão, a naturalização brasileira. Como uma mão lava a outra, com seu novo amigo Castor absorveu todos os códigos que regem a máfia italiana, sua forma organizacional e profissionalizou-se no metier. Sob sua liderança, estabeleceu a Cúpula do Jogo do Bicho, organizada legalmente pela LIESA.E foi assim que os desfiles de escola de samba se tornaram espetáculos luxuosos, grandiosos, caríssimos e, claro, uma boa forma de lavar dinheiro.

Não sofreram repressão da ditadura, pelo contrário, aliaram-se a ela. Três nomes sobressaem aí nessa história:  Castor, Abrãao Davi e Capitão Guimarães. Esse último, oficial da AMAN, participou ativamente das torturas e morte de presos políticos, tendo como comparsas os coronéis Paulo Manhães e Freddie Perdigão Pereira. Esses dois ostentam em seu currículo a articulação da terrível Casa da Morte, em Petrópolis. Durante a fase mais repressiva do regime, sua vida se baseava em caçar e matar os “subversivos”, recebendo até elogios de Costa e Silva, ministro de Guerra do apescoçado General Castello Branco, por seu valoroso trabalho. Concomitantemente, extorquia contrabandistas, era o líder da quadrilha, e por tal motivo foi afastado do exército em 1976.O fato é que com a abertura iniciada por Geisel e concluída pelo equino General Figueiredo, os militares da linha dura começaram a se sentir entediados, diria mesmo abandonados e sem função. Então o famoso tio Patinhas, bicheiro que recebeu esse nome por ser uma espécie de banco central da galera do bicho, abriu caminho para Guimarães. Em 1979 fechou-se a aliança e Guimarães teve uma carreira meteórica. Levou a sério o plano de “virar capo”. Ambicioso, sua primeira providência foi matar o próprio sócio. Importante falar que pelas suas mãos fortaleceu-se o elo entre o Jogo de Bicho e o Esquadrão da Morte. Sua ligação com o Esquadrão vem dos tempos da Scuderie Le Cocq, tanto que ainda militar ajudou o bandido galã (sim, temos isso) Mariel Mariscot, o Ringo de Copacabana, um dos líderes do grupo de extermínio, a fugir da cadeia. Ironicamente, anos depois, por suas mãos e com o aval da Cúpula, mandou executá-lo.  O fato é que de todos, o que tinha uma visão neoliberal, de aproveitar todas as oportunidades, era Guimarães. Por ser oficial de Intendência, conhecedor de administração, logística (que vergonha ele deve ter do Pazuello) e contabilidade, ele acabou com a desorganização e o improviso. Sua chegada inaugurou no jogo a adoção de procedimentos empresariais e se informatizou.

Aqui conseguimos traçar, ainda que de forma grosseira e superficial, um paralelo entre as milícias e o jogo de bicho. A milícia tem sua base nos grupos de extermínio, mas não podemos negar que possui aspectos estruturais e de organização sofisticados. Segundo o sociólogo e autor do livro Dos Barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense (2003), José Claudio Souza Alves,” a impunidade dos grupos milicianos é decorrente da sua própria penetração nas esferas do poder público. Ou seja, o Estado não foi corrompido, nem deturpado, nem sequestrado. Não é uma ausência de Estado. O Estado é o organizador, sendo uma estrutura atuando desde a década de 1970 de maneira intocada e com o surgimento das milícias amplia-se a sofisticação da dominação econômica na atuação de tais grupos. Os modos de operar o poder se sustentam em bases do controle territorial e econômico de certas atividades lucrativas. Entretanto, a forma de atuação não se dá de maneira homogênea entre estes grupos e a diversificação dos modos de operacionalizar e controlar as atividades em seus territórios adquirem uma discricionariedade contextual a partir dos objetivos e interesses dos agentes inseridos no poder “. A relação do jogo de bicho com a milícia é tão imbricada que basta falar das máquinas de caças níqueis. Esse mercado foi introduzido no Brasil pelos mafiosos da Itália, ideia comprada por Castor de Andrade, e hoje estão sendo alugados pelos milicianos. A questão territorial, além da crescente diversificação dos negócios, deixa bem explícito esse parentesco.

Foi pensando nessa correlação, que lembrei de uma triste coincidência. O bicheiro Miro, também da cúpula, deixou o controle de tudo nas mãos de seu dileto filho, Maninho. Aquele que em 1986 perseguiu o carro do filho do Tarcisio Meira, porque cismou que ele estava olhando acintosamente para sua mulher num restaurante, efetuando disparos que acabaram pegando no amigo de Tarcisinho, que estava no carona, deixando o rapaz paraplégico. Maninho era vizinho de porta do ex-marido, então namorado, da minha prima. E Grelha, o rapaz que levou o tiro, colega de sala e amigo da minha outra prima, irmã da primeira. O bicheiro conheci de boa noite ao cruzar no elevador, o Grelha conheci de churrascos na minha prima. Sim, coisas malucas que o destino me traz.  Em 2004 Maninho foi metralhado ao sair de uma academia. E aí a coisa toma rumos de novela que envolve disputa por caça-níqueis, duas gêmeas em guerra, uma enorme herança, um ex-cunhado, um pecuarista, e lá vem história…

Maninho teve três filhos. Um, assassinado em 2017 numa história mal contada de um sequestro. E duas gêmeas, Shanna (vamos combinar que ter um nome desses e não sofrer bullying na escola, só sendo filha de gangster) e Tamara. Em 2019 Shanna sofreu um atentado. Estava indo a um centro de beleza no Recreio, quando foi atingida por dois tiros, mas conseguiu se defender, abaixando-se no carro blindado. Acusou Bernardo Bello Barbosa, seu ex-cunhado, ex-marido de Tamara, controlador de mais de 14000 máquinas de caça níqueis entre outros negócios, de ser o mandante. O rolo entre a Ruth e a Raquel do Jogo de Bicho é longo, envolve o inventário do pai, em que Shanna foi nomeada inventariante, mas a irmã acusa- a de ter tentado passá-la para trás. O tal ex-cunhado também é acusado de matar o marido de Shanna ,Zé Personal, em 2011, no Centro Espírita Seara do Caboclo Cipó, na Praça Seca. Aos 39 anos ele foi alvejado por três homens encapuzados, enquanto se consultava com um Pai de Santo. Sério gente, eu não seria capaz de inventar essa história. Em 2020 morre Bid, irmão de Maninho, na Barra da Tijuca, voltando de um evento de uma escola de samba. Seu carro foi alvejado por mais de 40 tiros de fuzil. Em 2009 ele havia denunciado a própria sobrinha, a menina Shanna, de tê-lo ameaçado e de ter ordenado a morte do pecuarista Rogério Mesquita, morte essa orquestrada pelo chefe de segurança da moça:  Adriano da Nóbrega. E é aí que quero chegar…

Adriano quando criança passou um tempo na Zona Norte do Rio, com a mãe e em Cachoeiras de Macacu, para onde seu pai se mudou. Cresceu andando a cavalo no haras que seu pai era empregado, cujo dono era…Maninho. Quem cuidava do local era o pecuarista Rogério Mesquita, braço direito do bicheiro, a quem Adriano chamava de padrinho e que o chamava de afilhado. Sempre foi louco por armas, então ao invés de se dedicar a contravenção, já que vivia cercado por ela, preferiu ingressar na polícia. Em três anos entrou no BOPE. Gostava tanto do seu trabalho, que mesmo quando não havia uma ação programada, ele fazia por conta própria. Ele pegava uma Kombi, chamava alguns praças, enchia de armamento e invadia a favela na madrugada, sem alarde. Ações que invariavelmente terminavam em mortes. Ah sim, era tido na Corporação como um Herói.  Recebeu muitas honrarias, mas em 2003 se viu envolvido num esquema de suspeitas e acabou sendo saído do Grupo de Operações Especiais. Segundo o Jornal Globo, “Foi então transferido para o batalhão do bairro de Olaria, na Zona Norte, e lá seu currículo foi oficialmente manchado. O que antes eram apenas suspeitas de abusos e torturas contra moradores de comunidades se provaram reais. O Grupamento de Ações Táticas (GAT) da unidade que o capitão comandava ficou conhecido como “guarnição do mal” pelas favelas do bairro. Os policiais sequestravam, torturavam e extorquiam moradores em troca de dinheiro. Uma investigação da PM identificou pelo menos três vítimas do grupo chefiado por Adriano em 2003. Uma delas era Leandro dos Santos Silva, de 24 anos, que foi executado logo depois de denunciar que havia sido agredido.” Foi preso, condenado, deixou de receber a admiração dos colegas. O mesmo porém não se pode dizer dos políticos. Era endeusado pela família Bolsonaro. Recebeu naquela época do 01 a Medalha Tiradentes e Bozo, num discurso na Câmara, rasgou-se em elogios ao policial, chamando-o de “brilhante oficial injustiçado”, afinal seu único crime foi torturar moradores do morro.  Foi na prisão que ele se iniciou de fato na vida do crime. Com a morte de Maninho, passou a ser o chefe de segurança da família do bicheiro. Nessa época que pediu ao colega de Batalhão, o Queiros, que arrumasse um trabalho para a mãe e para a mulher no gabinete do Flavio Bolsonaro, no esquema de Rachadinha. Solto em 2006, levava uma vida dupla. Era policial, mas trabalhava para o então marido de Shanna, o Zé Personal, aquele que foi assassinado no centro espírita. Zé Personal pediu que ele matasse o gerente do Haras, aquele a quem ele chamava de Padrinho e ele topou. A emboscada não deu certo, Mesquita entregou-o, mas acabou sendo morto em 2009.  A partir daí Adriano resolveu se manter por contra própria, virou pistoleiro profissional e fundou o Escritório do Crime. Ganhava 250 mil por cada crime encomendado que desse certo.  Só foi desligado da polícia em 2014. E o resto a gente já sabe. Viveu um bom tempo na clandestinidade, acabou sendo assassinado pela polícia na Bahia e imortalizou-se no post de lamento de Flavio Bolsonaro falando do amigo “brutalmente assassinado”. Só me resta terminar essa explanação com uma frase do velho Castor (que perto do Bozo parece um lord): “A Contravenção tem um princípio. Ela é governo e não tem culpa que o governo mude toda hora”. E sim, o Jogo de Bicho e a Milícia dançam um samba bem juntinho e compassado.