A casa não difere das outras da zona rural de Teresina. Paredes de barro, chão de terra batida, sala, quarto e pequena cozinha. Dentro do espaço apertado, vivem sete pessoas. O casal e seus quatro filhos dormem todos no único quarto, espalhando-se como podem em camas, redes e colchão no chão.

Alguém mais atento vai dizer: peraí, tem uma conta errada. Casal, quatro filhos, tudo junto dá meia dúzia, não sete. Verdade, esqueci de acrescentar o bebê de nove meses, que dorme aninhado nos pequenos braços de sua mãe, menina de 11 anos. Ela foi estuprada por um primo quando tinha 10 anos, em matagal próximo à casa. Quando soube da gravidez, a mãe a levou ao médico, que desaconselhou o aborto, alegando que havia perigo de morte para a menina e o bebê.

A jovem mãe abandonou a escola, tornou-se quieta, reclusa, nervosa e agressiva. Recusa-se a conversar com psicólogos. Sequelas comuns aos menores que sofrem abuso sexual no Brasil. Entre 2017 e 2020, mais de 179 mil crianças e adolescentes foram vítimas de estupro. Quase um estupro a cada dez minutos. Na grande maioria dos casos, ele acontece dentro de casa e os violadores são pai, padrasto, tio, avô, irmão. As vítimas, traumatizadas e carregando danos psíquicos severos, têm suas infâncias sequestradas.

Vi a foto de perfil da menina piauiense na primeira página da Folha de S. Paulo. Com seu bebê no colo, à maneira com que devia fazer com as bonecas. Tive um misto de revolta e dor. Fora do meio acadêmico e dos nichos feministas, não existe um debate sério no Brasil sobre o aborto. O espaço público está dominado por fanáticos fundamentalistas, que interditam o diálogo mais do que necessário. Já tivemos uma ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que fez o que pôde para evitar que uma criança de 10 anos, no Espírito Santo, grávida por estupro, interrompesse a gravidez. Mulher dada a delírios místicos sobre árvores frutíferas, acompanhou impassível as manifestações de odor medieval que pressionaram a menina a persistir na gravidez. Antes de assumir o cargo, afirmou que “especialistas” holandeses recomendavam que meninos devem ser masturbados a partir de 7 meses de idade. Esse é o nível asqueroso em que vivemos, combinando religião com ignorância, preconceito com desinformação. Não é de se espantar que as falanges reacionárias tenham celebrado a decisão da Suprema Corte norte-americana, que suspendeu o direito ao aborto legal. Retrocesso civilizacional de meio século.

Com medo de desagradar eleitores, os políticos se acovardam e evitam incluir o tema em seus programas eleitorais. Pior. Quando assumem cargos executivos, apagam-no de seu mapa de prioridades. O resultado me faz lembrar de um velho adágio popular. Em cima da queda, coice.

A psicóloga Daniela Pedroso, que atende vítimas de violência sexual em São Paulo, relata um caso que reforça a dimensão da tragédia humana em curso. “Atendi uma vez uma menina de dez anos que chegou grávida ao serviço. Ela estava no banho e viu sair leite do seio. Gritou pela mãe. Foi aí que ela conseguiu contar para a mãe que tinha sido estuprada pelo padrasto. Estava grávida de cerca de 20 semanas”.

Crianças que, sem qualquer condição física e psíquica, assumem maternidades. Infâncias assassinadas por abuso. Millôr Fernandes desenhou poeticamente esta fase da vida: “Pegamos o telefone que o menino fez com duas caixas de papelão e pedimos uma ligação com a infância”. Para as violentadas, o barbante é bruscamente cortado. Sobram os fantasmas que as assombrarão pelo resto de suas vidas.

Abraço. E coragem.