São, São Paulo quanta dor/São, São Paulo meu amor (Tom Zé)
Nunca pisei na Estação da Luz, muito menos esperei o trem das onze. Apenas imaginei a cena de sangue num bar da avenida São João. Convidado pelo Adoniran em pessoa, talvez fosse a um samba no Bexiga. Só não gosto da ideia de um quebra-pau com bracciolas arremessadas no Nicola. Povero ragazzo. Queria sentir o cheiro do Buraco da Sara, lá no Bom Retiro. Houve nariz, mas faltou oportunidade. Meu sonho de boleiro era assistir um treino da primeira Academia, no gramado do Palestra. Ficou só no devaneio. Valdir, Djalma Santos, Servílio e Julinho Botelho são apenas um retrato desbotado que sorri.
Com esses antecedentes, minha relação com São Paulo nunca passou de uma vaga declaração de intenções. Jamais dei bola pra lendas como túmulo do samba, o Vinícius devia ter tomado whisky batizado quando falou isso, e população sempre apressada, sem tempo para afetos. Em épocas diferentes, tive pequenos encontros com a cidade. Sem perceber, invadiram solo sagrado: o das lembranças formadoras.
Meados dos anos 70. Animado com a leitura de um livro sobre a história do movimento sindical brasileiro, propus uma extravagância ao amigo com quem rachava o apartamento em esquema mezzo república estudantil. Leia-se: penúria escrachada. Que tal, atrevi-me, darmos um pulo em São Paulo e conversarmos com imigrantes italianos que tiveram alguma experiência de luta sindical? A seco, sem conhecer ninguém, com a cara, escassos trocados e a coragem. Para meu espanto, o amigo topou. No fim de semana, partimos no fusquinha desabituado a atravessar fronteiras.
Nem me perguntem como, mas acabamos dando no Bexiga. Ainda cedo de manhã, batemos na porta de uma casa qualquer. Apareceu um daqueles personagens saídos de manuais anarquistas. Cabeleira vasta, embranquecida, bigode à la Bartolomeo Vanzetti, olhos pregados no futuro. Nos convidou a entrar, serviu um café e abriu os trabalhos. A gente não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Ligamos o gravador e registramos passagens vividas da história social do país. Greves de sapateiros, alfaiates. Enfrentamento da repressão. Construção de fraternidades operárias. Imprensa anarquista. Saímos deslumbrados, tínhamos em mãos um documento precioso. Na volta ao Rio, choque de realidade. Passávamos por um dos momentos mais duros da ditadura civil-militar. Terrorismo de Estado, Armando Falcão anunciando com ar sinistro o estouro de uma gráfica clandestina do PCB, militantes sequestrados e mortos. Medo. Tomamos uma decisão terrível, mas necessária. Não podíamos conservar as fitas cassete, eram prova de “subversão”, perigo de vida. Foram destruídas. O que não se apagou foi a memória da São Paulo de imigrantes, da São Paulo pelejadora, da São Paulo operária.
Não muito tempo depois, voltei à cidade. O Ibirapuera estava promovendo uma Arca de Noé, exposição zoológica com demonstrações de adestramento de animais, extração de venenos de cobras e outros detalhes mimosos. O programa não era exatamente excitante, apenas pretexto para um passeio. Hospedamo-nos no hotel Jaraguá, centro histórico de São Paulo, sede do Estadão. Ao desfazer as malas, dei um tapa na testa. Caramba! Esqueci de trazer sapatos. Entre meus pés e o chão havia uma fina película de borracha chamada sandália. Bem, pensei, se não chover dá para levar na esportiva. Torci contra a fama de terra da garoa. Sempre achei que ela não passava de uma demonstração do que Pedro Nava dizia: o sentimento mais comum do ser humano é a má vontade. Que nada. Por dois dias, com persistência bíblica, choveu aos potes, suficiente para justificar a arca que viéramos assistir. A sandália só não virou pé de pato por descrença no transformismo. Ali estava, pujante, a São Paulo úmida, a São Paulo aquífera, a São Paulo glub glub.
Nos últimos dias, duas notícias paulistanas contrastantes. Na contracorrente do que se observa, por exemplo, no Rio, há uma onda de abertura de livrarias de rua. Desde 2021, abriram pelo menos dez. Artesanais, especializadas, focos de atividades culturais, há de tudo. Inclusive uma que ocupa o lugar onde anteriormente funcionava um bar (quem dera isso indicasse uma tendência!). Na outra ponta da civilidade, uma loja de armas promoveu festança para lançar fuzis para pronta entrega. São armas semiautomáticas, vendidas por módicos R$ 20 mil, proibidas para venda no Brasil até o Repugnante tomar posse. No seu mandato, já foram produzidos 38 documentos que facilitam armar “cidadãos de bem”. Além de armas de fogo, a loja vende, por exemplo, bastões de beisebol utilizáveis para espancar gente. Neles, há inscrições como Amansa Loco, Respeito, Direitos Humanos e, sem surpresa, Diálogo.
Esta é a São Paulo que, como todos nós, está envolvida numa gangorra de Vida e Morte, de Cultura e Barbárie, de Futuro e Desesperança, de Criatividade e Destruição. Valei-nos, Juó Bananère!
Abraço. E coragem.