Nasci alguns anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Às vezes, tenho a impressão de que as ruínas ainda fumegam e a história do conflito jamais terminará de ser contada. Melhor seria dizer as histórias que aconteceram durante o conflito. Ora se descobre um documento, depois é localizada uma partitura composta em condições indescritíveis, mais tarde é um diário que desvenda a rotina de carências e terror. Recentemente, li um livro, ainda sem tradução para o português, sobre seis adolescentes e jovens judeus, residentes na Europa Oriental, cuja vida foi violentamente interrompida em 1939. Ali estão descritos seus corpos mutantes, suas inseguranças, seus primeiros desejos amorosos, seus sonhos. Tudo registrado em pequenas folhas de papel, escondidas nos tubos de um órgão em Vilna, cidade que era conhecida como Jerusalém da Lituânia, e descobertas não faz muito. Vozes silenciadas.
Uma história que desconhecia acabo de descobrir na revista Devarim. Ela me reanimou o dever de contar, para que não se esqueça. Amnon Weinstein, luthier residente em Tel Aviv, tem uma coleção inusitada de instrumentos de corda. São violinos, violas e violoncelos cuidadosamente restaurados e expostos na oficina de trabalho. O que têm de especial?
Todos pertenceram a músicos judeus, profissionais ou amadores, atingidos pelas perseguições antissemitas nazistas. Muitos foram recuperados de campos de concentração e extermínio. Em Auschwitz, por exemplo, existia uma Orquestra Feminina, mulheres forçadas a tocar marchas e músicas selecionadas pelos algozes para criar uma sensação de normalidade no ambiente sombrio. Alma Rosé, sobrinha de Gustav Mahler, violinista excepcional, regeu essa orquestra. Foi assassinada ali mesmo, em 1944.
Nos anos 30, em Amsterdam, Helena Visser, não judia, era vizinha e amiga de Fanny Hecht, judia que gostava de tocar violino. Com a invasão nazista na Holanda, em 1940, Fanny anteviu que seria presa e pediu a Helena que, caso a Gestapo a levasse embora, fosse a seu apartamento, recuperasse o violino e o guardasse até sua volta. Fanny foi levada pelos nazistas e jamais voltou. Helena e depois seus descendentes guardaram o violino, de muito boa qualidade, durante 74 anos, até descobrirem o trabalho de Weinstein. Foram a Israel e o entregaram pessoalmente a ele.
O luthier criou o projeto Violinos da Esperança, através do qual os instrumentos recuperados são tocados em concertos mundo afora. Na entrevista concedida à Devarim, Weinstein disse: “Fazemos concertos com estes instrumentos históricos em todas as partes do mundo. Nós não vendemos os violinos. Levamos – um, dois, vinte, a quantidade que for combinada – para o local e organizamos concertos onde músicos locais usam os instrumentos. Depois fazemos palestras sobre eles”. Imagino a emoção destes músicos ao ressuscitar sons sufocados pela bestialidade nazista.
De alguma forma, Weinstein incorpora a intenção de Emmanuel Ringelblum. Intelectual socialista, Ringelblum esteve no gueto de Varsóvia. Testemunhou a rotina de morte, doenças e desespero e resolveu registrá-la, mesmo que em condições precárias. Formou um pequeno grupo e todos passaram a recolher tudo o que podiam. Cartas que jamais seriam expedidas, anúncios de todos os tipos, pequenas publicações, poemas, embalagens, etc. Aos poucos, foram organizando um arquivo respeitável, a que deram o nome de Oineg Shabes. Para preservá-lo, colocaram tudo em latões de leite e enterraram no subsolo de uma casa. Ringelblum e seus auxiliares acabaram assassinados. Depois da guerra, escavações permitiram recuperar boa parte do arquivo, que, até hoje, constitui material inestimável para contar a história do gueto. Os documentos dão voz aos que foram metodicamente liquidados.
Karl Marx disse que “a tradição de todas as pessoas mortas pesa como um pesadelo sobre a mente dos vivos”. Numa interpretação livre, penso que a palavra “tradição” poderia ser substituída, com a devida cautela, por “memória dolorosa”. No entanto, Weinstein e Ringelblum comprovam, podemos transformar o que foi motivo de perdas e desconsolo em beleza renovada e conhecimento libertador. Melhor assim.
Abraço. E coragem.