Há momentos em que não há meio-termo possível, em que somos obrigados a tomar partido, sem ambiguidade e sem “mas”. Este momento é agora. Estamos mergulhados num desses tempos de plena mutação, em que as decisões que tomamos definirão o rumo da História. Nós, que vivemos em democracia, temos a chance de nos manifestar, negada a bilhões de cidadãos no mundo inteiro. É por isso que não temos desculpa, não temos, porém. Somos livres e por isso não temos direito ao silêncio ou à indiferença.

É assim com relação à guerra, é assim com relação à política. A questão que se coloca é queremos ser livres, donos do nosso destino? Ou preferimos enfiar a cabeça na areia tal qual os avestruzes esperando que tudo se « resolva » por si só?

A hipótese do avestruz parece ser a preferida de muitos, mais ainda no que tange à política. O populismo extremista, apesar de todos os pesares, continua a ganhar terreno, com a reeleição de Viktor Orbán, na Hungria, o crescimento da extrema-direita na França e do inominável no Brasil.
Caímos facilmente na ilusão de dizer que ao final de um mandato, ou daqui a seis meses, um ano, o pesadelo terá passado e poderemos regressar tranquilamente à vida que vivíamos antes, inclusive antes da guerra de Putin. Ela diz presente todas as noites, na hora dos telejornais, que transmitem as imagens de horror que nos chegam continuamente da Ucrânia. É inegável que sentimos um soco no estômago, revolta, sentimento de angústia. Mas também sabemos que os efeitos da violência pouco a pouco se banalizam, sobretudo quando estamos longe. A barbárie acaba se transformando em simples imagens.

Hoje, a informação em tempo real nos dá, a cada um de nós, uma responsabilidade muito maior, a de sabermos. Hoje não podemos negar o que se passa porque vemos praticamente ao vivo a bestialidade do massacre de Bucha, a lembrar o de Serebrenica, na Bósnia, em 1995. Não temos desculpas. Não há MAS possível. Nem sequer diante das patéticas explicações de comentaristas militares nas nossas telas. Dizer que Bucha pode ser uma encenação é dizer o mesmo que Putin, é dizer aquilo que a consciência humana não pode nem deve tolerar. É o mesmo que apagar das fotografias os dirigentes soviéticos que tinham sido abatidos sumariamente por Stalin. É o mesmo que não querer ver as provas dos campos de extermínio nazistas antes de serem libertados. É o mesmo que virar de costas para os corpos queimados por napalm no Vietnã.

Esta brutalidade não é de hoje, nem pode ser legitimada pela simples circunstância de uma guerra. Não temos o direito de dizer que, em guerra, é sempre assim, porque não é. Precisamos recuar à Chechênia, no final dos anos 1990 e início deste século, ou à guerra na Síria a partir de 2015, para entender que esta brutalidade e esta crueldade fazem parte da doutrina militar da Rússia.

Não há relativismos possíveis, nem pretensas comparações entre “imperialismos”, sempre evocadas por uma certa esquerda nestas circunstâncias.
Evoquemos a guerra do Vietnã. Os EUA perderam a guerra, em grande parte por força da sua opinião pública e da liberdade de informar, totalmente ausente da Rússia do autocrata Vladimir Putin. O argumento da “equivalência” entre dois imperialismos é uma das razões para esta tal « esquerda » torcer para as tropas do czar, como se estivesse na arquibancada do Maracanã. O mesmo acontece com a extrema-direita, que vê em Putin um “líder” capaz de impor a autoridade que falta às democracias.

É também por isso que temos de tomar partido. Sem “mas”. Dizer que há um invasor e um invadido não basta. É preciso ir além, ter a coragem de afirmar que a democracia – palavra que os dois extremos odeiam – está sendo atacada e que a liberdade não é uma utopia e sim um objetivo.

O medo é outro argumento de peso, do qual precisamos nos livrar. Mesmo se é um elemento fundamental em todas as guerras, temos de compreendê-lo nas suas consequências, sob pena de termos de viver com ele por tempo indefinido.

Por compreensível que seja, o medo de Putin e das suas ameaças nucleares não pode condicionar nossa postura sobre esta guerra. As ameaças tenderão a aumentar, mesmo porque Putin não precisa de pretextos para utilizar armas de destruição de massa, como fez na Chechênia e na Síria. Recorrerá a estas armas porque esta é a sua visão apocalíptica do mundo ou então por instinto de sobrevivência.

É também por isso que não pode haver um “mas”. Devemos dizer claramente de que lado estamos: da invasão da Ucrânia pela Rússia, com a sua miríade de mortos, ou contra esta guerra absurda. O que nada tem a ver com um alegado apoio à OTAN ou ao imperialismo americano.

Neste combate que os ucranianos travam está a democracia. A deles, mas também a nossa. Esta democracia temos de defender sem “poréns”.
Como lembra a colunista Teresa de Sousa, no Público, de Lisboa, há momentos em que a velha frase de Churchill ganha todo o seu significado – “a democracia é o pior dos regimes à exceção de todos os outros.” Para o grande estadista britânico, não havia, mas possível face a Hitler. Por isso lhe devemos tanto. Por isso não há “mas” possível face a Putin.