Cientistas chineses descobriram que nostalgia pode, sim senhor!, ter efeito analgésico, reduzindo, em alguns casos, a percepção de dor física. E tem mais. Se você pensou apenas em fotos antigas, daquelas em preto e branco, coladas em álbuns vestidos em tons de amarelo, enganou-se. O efeito analgésico se estende a músicas, filmes, histórias, cheiros e sabores. Portanto, ilustre passageiro, não se acanhe em derramar uma furtiva lágrima emocionada se navegar em lembranças significativas. Você estará não apenas nutrindo-se de prazer e construção afetiva, mas defendendo-se melhor das dores de viver.
Esta semana começa a celebração do Pessah, uma das principais festividades do calendário judaico. Talvez a liberdade seja a principal marca por trás das reuniões familiares que recontam, a cada ano, a história do fim da servidão hebreia no Egito antigo. Disso tratarei adiante, agora fico nas imagens nostálgicas dos meus Pessahim anciãos. São fotografias na parede da memória, mas, à diferença dos retratos itabiranos do Drummond, não costumam doer. Ao contrário. Aliviam e não se cansam de criar vida e novos significados.
Como nos desejos de qualquer criança, já sonhei que a família original jamais se desfalcaria. Aquela gente seria para sempre. No jantar de Pessah, o time vinha completo. Depois de uma rápida leitura da história tradicional, a conversa adornava o caldo de galinha fumegante, onde boiavam soberanos os kneidlach (bolinhos de farinha de matzá, o pão ázimo consumido no Pessah), evoluía para o guefilte fish invencível (bolinhos de peixe), salpicados com hrein (raiz forte), fazia um pit stop no ovo cozido mergulhado em água salgada e desembarcava, lânguida, no ferfale com frango. As crianças, hipnotizadas por aquele festival de aromas e sabores, eram convidadas a cantar músicas típicas. O Menino adorava o Avadim ainu (fomos escravos, agora somos homens livres) e o Ma nishtaná (por que esta noite é diferente das outras?). Por breves momentos, aquela comunhão parecia eterna. Homens e mulheres esqueciam suas dores e angústias, confraternizavam, sorriam sem freios, reconheciam-se nas memórias comuns. Minha fascinação por aqueles encontros não conhece limites.
Como antecipei linhas acima, no Pessah se recorda a saída dos hebreus do Egito antigo. O povo egípcio foi duramente castigado pela recusa do faraó em libertar espontaneamente seus escravos hebreus. O deus da história, juiz e carrasco, é implacável e vingativo. Aplicou, com extrema violência, uma punição coletiva, indiscriminada, selvagem. Mesmo que, crianças, não tenhamos percebido, ali estava uma demonstração evidente de poder absoluto. No filme “Crimes e pecados”, meu predileto na obra do Woody Allen, há uma cena do jantar de Pessah. Ali entram em confronto as visões religiosa e laica da libertação dos escravos hebreus. Prefiro, sem dúvida, a laica, que destaca o significado da liberdade. É o imperativo da razão infiltrando-se na narrativa mitológica.
Cada época tem seus faraós, opressores de diversos matizes e coturnos. A quais servidões estamos sujeitos nos tempos que correm? O que nos ameaça e amedronta? Na fila quilométrica dá para fazer alguns destaques. A gente não consegue sequer respirar sem o risco de morrer intoxicado. Segundo a Organização Mundial da Saúde, quase toda a população mundial (99%) respira ar poluído que faz mal à saúde. A poluição do ar é responsável por cerca de 7 milhões de mortes por ano. Nosso modo de vida é suicida.
O que dizer da solidão, que atinge proporção de epidemia no mundo? A comunicação direta, calorosa, é cada vez mais substituída por tralhas eletrônicas, que abrem um mundo ilusório, mas tentador e espetaculoso. Bom exemplo desta servidão é o TikTok, que propaga vídeos curtos e tem mais de 1 bilhão de usuários. O público-alvo, principalmente jovens, costuma passar muitas horas com olhos vidrados na tela do celular. A ciência comprova: quanto mais tempo ficam, mais demandam novas imagens. É um poder viciante que se assemelha ao tabaco e a certas drogas pesadas.
As fronteiras entre o público e o privado estão implodidas. É a cultura do buraco de fechadura, na qual acabamos prisioneiros de curiosidades tão mórbidas quanto paralisantes. Estamos famintos por um pouco de paz, de diálogo, mas no cotidiano somos prisioneiros de sectarismo, fanatização, guerra real ou virtual, movimentos puramente musculares. Como disse Tostão, “há cada vez mais pessoas que não querem aprender. Preferem a repetição, a polarização e a visão estreita de só enxergar e escutar o que está de acordo com as próprias convicções”.
Para além da repetição mecânica de uma tradição, o Pessah pode ser uma boa ocasião para pensar sobre o quê nos agride, sufoca, impede de ter uma vida mais livre e criativa. Sobre, enfim, os faraós e as pragas da modernidade. Não custa nada sonhar que essas reflexões sejam apenas um primeiro passo para transformar de verdade os grilhões em liberdade pessoal e coletiva.
Já ia pingar o ponto final, quando senti um leve tremor numa foto pendurada na parede da memória. Espantado, vi o tio Bóris se levantar da mesa do Pessah, colocar o rosto para fora da moldura e fazer um psiu categórico. Aproximei-me e ouvi o audaz bessarabiano dizer: Main taiere quind, querido Menininho, o texto até que não está ruim, mas, cá entre nós, e falo em nome de toda a família, não faltou alguma coisa? O principal, talvez, já que falou em libertação? E piscou a sabedoria milenar do seu shtetl. Dei um tapa na testa! Claro, é como dizia um personagem do Scholem Aleichem: Der ikar shahahti. O principal ficou de fora. Bóris retornou à mesa bidimensional e o vi levantando uma taça de vinho junto com o resto da trupe. Lehaim, disseram, à vida! Fiz um brinde imaginário e acrescentei o principal ao texto, o tijolo que faltava na jornada contra a tirania: Fora Bolsonaro!
Hag sameah!
Abraço. E coragem.