A invasão da Ucrânia pela Rússia vai deixar feridas profundas na esquerda brasileira, que certamente demorarão a cicatrizar. Após um momento de rara unanimidade no enfrentamento ao nazifascismo bolsonarista, como houve anteriormente nas manifestações das « Diretas já », vivemos uma divisão radical das esquerdas, de grande violência. Chegou a haver manifestações de ódio entre campos adversos.
A guerra pediu posicionamentos claros e os militantes de esquerda não se esquivaram. Assim, formaram-se, grosso modo, dois grandes campos: o dos prós e o dos anti Putin.
O primeiro abandonou os valores de esquerda para se jogar de corpo e alma num antiamericanismo cego, defendendo a intervenção militar russa sob o argumento do combate ao imperialismo estadunidense. Houve aplausos estridentes a Putin, que enfim ousou desafiar a OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte – e consequentemente Washington e seus aliados europeus, chamados de lacaios. O anti-imperialismo serviu de justificativa à guerra e até as atrocidades onipresentes nos conflitos armados, como a destruição de hospitais, escolas, orfanatos, padarias e sapatarias, deixando um rastro de morte.
Putin deu a este grupo de « torcedores » uma outra justificativa de peso, embora mentirosa: a desnazificação da Ucrânia. Não que se negue a existência de milícias armadas neonazistas na Ucrânia, que aliás se especializaram em formar combatentes estrangeiros. Eu mesmo publiquei em livro a história do Batalhão Azov e do Previi Sektor, duas milícias que deixaram suas marcas no grupo dos 300 liderado por Sara Winter, que acampou nas proximidades do Palácio presidencial, em Brasília, e atirou fogos de artifício contra a fachada do STF. Mas é preciso também falar dos neonazistas russos, como o Bataljon Sparta, unidade acusada de vários crimes de guerra e que luta no Donbass.
A mentira da pretensa desnazificação vem da extrapolação da acusação para a Ucrânia como um todo. O país não sendo nazista não há porque desnazificá-lo. Mas como fazia com maestria Goebbels, o ministro da Propaganda de Hitler, a mentira contada milhares de vezes torna-se verdade na cabeça daqueles que ouvem e até mesmo daqueles que a inventaram. Assim sendo, essa parcela da esquerda engoliu a fraude, mesmo sabendo que se tratava de um argumento falacioso, pois servia aos seus interesses.
A referência à desnazificação, mesmo que mentirosa, não pode ser entendida sem uma referência histórica. Quando os alemães atacaram a URSS, em 1941, o movimento nacionalista liderado por Stepan Bandera proclamou, sob a autoridade dos nazistas, a Ucrânia independente. Só que a situação atual nada tem a ver com essa história, manipulada por Vladimir Putin. A Ucrânia de hoje não é a Ucrânia da época de Bandera,aliás citado com uma insistência doentia.
O roteiro esquerdista estava escrito: a invasão era a « desculpa » tão esperada para combater os Estados Unidos e a Europa e, paralelamente, com uma pitada de saudosismo socialista soviético, criar uma Rússia « ideal », que pouco (ou nada) tem a ver com a atual. A realidade é outra, a Rússia de hoje é de extrema-direita, vive sob um regime ditatorial, em que não reina o primado do Direito, a violação dos direitos humanos é sistemática, não há liberdade de expressão, nem justiça social, nem igualdade de gênero. A palavra de ordem vem do Kremlin e de seus oligarcas. Vladimir Putin é o maior financiador dos partidos europeus de extrema-direita. Ele é nazifascista, mas isso tampouco importa, pois essa esquerda está presa à Guerra Fria e se coloca a favor do « czar » por ser ele, supostamente, antiamericano. « O inimigo do nosso inimigo é nosso amigo ». Trata-se de uma esquerda velha, que o Coordenador do Observatório da Extrema-Direita, David Magalhães, chama de « paleozoica ». É uma esquerda que não se oxigenou, que mescla nacionalismo com esquerdismo e que vê em Putin uma força para enfraquecer a posição dos Estados Unidos no mundo. E isso basta.
Pouco importa se o guru do chefe do Kremlin, Aleksander Duguin (que deu nascimento no Brasil ao movimento de extrema-direita Nova Resistência), professa a ideologia antiglobalista e o antimarxismo cultural do Olavismo, base do bolsonarismo e da Alt-Right mundial. Pouco importa se o lema do Duguismo, emprestado de Trump, é « A Rússia grande de novo ». Nada disso conta.
Para essa esquerda, diz Magalhães, tanto se lhe dá se Putin é um déspota e tem uma agenda hiper-relacionaria. O essencial está na crítica do império americano ao mesmo tempo que minimiza o império russo. Esquerdistas desta ala não hesitam em ressuscitar o termo « democracia relativa » do general-ditador Ernesto Geisel para explicar que Putin não é um autocrata nem a Rússia uma ditadura.
É uma esquerda sob a influência das teorias conspiratórias divulgadas pela mídia moscovita, a começar por Sputnik e RT, frequentemente citados na mídia independente brasileira. O antiamericanismo é o valor absoluto que serve como visão de mundo. É o modelo que explica e justifica tudo, até mesmo alianças com Jair Bolsonaro, defendidas despudoradamente. O antissemitismo é o complemento desta receita explosiva.
Essa é a esquerda brasileira representada por José Dirceu e o PCO.
Em contrapartida há, dentro do próprio PT, uma outra esquerda, a do ex-chanceler Celso Amorim, cabeça pensante de Lula em política internacional.
É uma esquerda que não hesita em condenar o expansionismo da Aliança Atlântica, mas que não cede ao conspiracionismo e defende os valores humanistas: democracia, Estado de Direito, Direitos Humanos, Justiça Social, não discriminação de minorias. Essa outra esquerda, que inclui o ex-presidente Lula, denuncia todos os imperialismos, sejam eles americanos ou russos. Em nome da defesa dos direitos humanos, não aceita fazer aliança com regimes nazifascistas, é favorável à autodeterminação dos povos, de todos os povos na Ásia como nas Américas, na Europa, no Oriente Médio e contra a invasão de um país por seu vizinho.
Essa outra esquerda, da diplomacia, não aceita o argumento russo de que o simples interesse ucraniano em ingressar na OTAN justifica uma intervenção, mesmo porque a Aliança Atlântica havia descartado a adesão nos curto e médio prazos e que Emmanuel Macron e Olaf Scholz estavam mediando o diálogo. Não havia, portanto, risco imediato que explicasse a necessidade premente da guerra. Além disso é preciso lembrar que a invasão aconteceu à revelia do Direito Internacional, já que apenas as operações militares avalizadas pela ONU são consideradas legais, salvo quando se trata de legítima defesa. E ao que se saiba a Rússia não foi atacada. A eventual legitimidade não significa legalidade. A invasão foi, nas palavras de Amorim, uma violação grave do direito internacional, um erro. Moscou não consultou a ONU em nenhum momento.
É verdade que a esquerda esteve dividida com frequência, o que sempre foi muito claro no Partido dos Trabalhadores, mas a Guerra da Ucrânia deixou as veias abertas, plagiando Eduardo Galeano. Para uns, Putin é herói, para outros não passa de um ditador sanguinário, um criminoso de guerra que deve ser julgado pelo Tribunal Penal Internacional, que não hesitou em lançar seus tanques contra uma escola em Beslam e matar 156 crianças, nem em fornecer armas químicas à Baschar el-Assad, nem por fim invadir a Ucrânia.
Isto dito, a postura anti-OTAN na América Latina e no Brasil em particular é compreensível e justificável, na medida em que há um traumatismo histórico pela influência imperialista americana na região.
O problema é que o diálogo entre as esquerdas ficou quase impossível, na medida em que a questão central envolve valores fundamentais e que os dois lados acreditam ter razão; não parecem nem um pouco dispostos a abrir mão de suas posições, nem avançar em direção do outro.
A apenas alguns dias do anúncio oficial da chapa Lula-Alckmin, momento em que o ex-presidente precisa da unidade de todas as suas forças, as esquerdas estão divididas, mais do que nunca. Que não seja de forma irremediável…