O europeu não pôde fazer-se homem senão fabricando escravos e monstros (Jean-Paul Sartre)

A essa altura vocês já devem estar saturados de imagens e comentários sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia. Conflitos “menores”, ou seja, sem o peso geopolítico do leste europeu e os enormes interesses econômicos envolvidos, jamais mereceram sequer fração da cobertura que este anda recebendo. A seletividade não é nova, daí que não me espanto. Para os médicos legistas, mortos iraquianos, iemenitas e somalis não são diferentes de cadáveres russos e ucranianos. A lógica “civilizada”, no entanto, caminha noutra direção. Se entendermos a letra num sentido mais amplo, tinha razão a Elza Soares quando cantou “a carne mais barata do mercado é a carne negra”.  Negra pode ser estendida, metaforicamente, para toda gente despossuída, pobre, oprimida, invisível. O humanismo seletivo é tão abjeto quanto a indiferença e o preconceito.

Não precisam se assustar. O cronista não pretende adicionar novas interpretações às incontáveis análises sobre o conflito. Há no mercado sapiências que cheguem. Tenho cá minhas opiniões sobre ele, mas vou beber Millôr Fernandes: “Livre pensar é só pensar”. Seguindo essa trilha, quero apenas sair da superfície em dois temas que sobrevoam tudo o que está acontecendo no conflito russo-ucraniano.

O primeiro aparece num artigo do sociólogo Bernardo Sorj. Conheço-o há anos. Já me solidarizei institucionalmente com ele, em 2016, quando foi vilmente atacado pelo então cônsul honorário de Israel no Rio de Janeiro. No artigo Putin, Bolsonaro e certa esquerda, publicado n’O Globo, afirmou que “os Estados Unidos, apesar das várias brutalidades cometidas, protegem a ordem mundial do capitalismo democrático”. Fiquei intrigado. Difícil acreditar que o Bernardo não tenha percebido a contradição abissal entre brutalidades e qualquer coisa remotamente concebida como democrática. Estamos fartos do discurso hipócrita dos campeões da democracia, cujas ações intervencionistas sempre trouxeram destruição e morte. Que tipo de ordem democrática se constrói com arrogância imperial? Quantos mortos Kissinger, McNamara, Kennedy, Lincoln Gordon, Johnson, Nixon, George W. Bush, carregam em suas sombras sinistras? Que sanções o mundo acovardado aplicou quando os Estados Unidos usaram armas químicas no Vietnã (napalm) e biológicas em Cuba (bombardeio com pragas para destruir plantações)? Que punição mereceram pela destruição do Iraque, baseada numa mentira escandalosa e deixando cerca de meio milhão de mortos e uma legião de desterrados? Uma frase resume o “capitalismo democrático” de que fala Sorj. O carniceiro Henry Kissinger disse que não via nenhuma razão para permitir que qualquer país “se tornasse marxista” só porque “seu povo era irresponsável”. Referia-se ao Chile e a consequência foi um golpe sanguinário. Com apoio “democrático”. Capitalismo e democracia, a gente não se vê por aqui. Por quê?

O capitalismo é um modo de produção muito dinâmico. Marx reconheceu isso desde cedo. No entanto, ele se assenta num processo de acumulação que gera desigualdade estrutural. Internamente, entre classes. Externamente, entre nações. Não é possível acreditar numa “ordem capitalista mundial democrática” quando, segundo a FAO, quase uma em cada três pessoas no mundo (2,37 bilhões) não tiveram acesso adequado a comida em 2020. No mesmo ano, o gasto militar global, puxado pelos Estados Unidos (cerca de 40% de todas as despesas militares), equivaleu a um ano de Bolsa Família por dia. É assim que opera o monstrengo. Ao mesmo tempo em que é capaz de maravilhas tecnológicas, como as incríveis fotos de um átomo e um buraco negro, martiriza o planeta produzindo armas cada vez mais letais, convivendo com uma fome obscena e uma distribuição de riqueza assassina, parasitando esquemas de poder excludentes e liberticidas (desde que não interfiram no livre fluxo do capital).

No final do artigo, Sorj faz um desafio político e intelectual. E esse é o segundo tema do meu interesse. Quem não quiser aceitar o mundo existente, diz, “se dissocie dele e produza teorias de um mundo alternativo”. Bingo! A nós, que não nos sentimos representados pela pantomima “democrática” e queremos, a exemplo do que escreveu Marx nas Teses sobre Feuerbach, não apenas interpretar o mundo mas transformá-lo, cabe conceber e ajudar a criar as bases de um modo de produção radicalmente justo e emancipador. Temos que estudar as primeiras experiências socialistas, seus avanços e desvios, seus acertos e erros. É, afinal de contas, nossa ancestralidade política. Herança se compreende e se avalia, não é obrigatoriamente um destino manifesto. É trabalho político para gerações, mas, como dizem os pacientes chineses, para se andar mil quilômetros é preciso dar o primeiro passo. Ainda é atual o que disse Rosa Luxemburgo: socialismo ou barbárie. E não me refiro ao socialismo do Geraldo Alckmin…

Abraço. E coragem.