Pouco a pouco o carnaval se transfere para Brasília. Brasília já tem, pelo menos, o maior bloco de sujos. (Millôr Fernandes)

Aproveito o carnaval e faço uma pequena pausa para meditação. A crônica de hoje vai ao ar semana que vem. Como a natureza, e queiramos ou não somos parte dela, detesta vazios, deixo aqui alguns pensamentos soltos sobre o que os antigos chamavam de tríduo momesco.

Os que me acompanham há algum tempo sabem. Detesto carnaval. Trata-se de sentimento longevo, desde quando adultos insensíveis vestiram o Menino com uma fantasia de Nero. Logo aquela criança nada piromaníaca, que só ensaiava incendiar a imaginação! Enquanto as chanchadas da Atlântida aqueciam os motores para a festa, fazendo desfiles na tela com Emilinha Borba, Marlene, Blecaute e as irmãs Batista, eu tentava saídas silenciosas para a agitação ao redor. Não era fácil. A excitação parecia lei federal. Os que a transgrediam estavam condenados à zombaria. Hoje diriam cancelamento.

Para não dizer que não falei de flores, digo, de exceções, cito dois casos. O Bloco do Eu Sozinho, invenção foliona de fundo chapliniano, sempre me fascinou. Pessoas que, sem medo da fantasia de Solidão, não precisam mais do que uma expressão intraduzível e um estandarte modesto para se transportar, por breves dias, para um universo paralelo. Twilight zone com confete, serpentina e lança-perfume. É neste universo que habita meu segundo caso.

Nos anos 80, trabalhei no BNDES. Acompanhava projetos industriais financiados pelo banco. Estava em Recife, reunido com o executivo de uma empresa. Terno bem cortado, gravata discreta, cabelo bem comportado, fala mansa e articulada. No intervalo para café, descontraiu-se. Contou que tinha um acordo com a mulher. Na sexta-feira pré-carnaval, ele arrumava uma pequena valise e sumia para destino ignorado. Só reaparecia na quarta-feira de cinzas, depois do desfile do Bacalhau do Batata. Pelo acordo, não se faziam perguntas sobre os quatro dias sumidos do mapa, findos os quais voltava a valer, levemente alterada, a velha música do Chico: todo dia ele faz tudo sempre igual… Ouvindo a história, flutuei em muitas fantasias, da ala das piranhas de algum frevo suburbano ao bacanal à moda do baile no Iate Clube do Rio de Janeiro, todo mundo pelado na piscina. Por momentos, valiam para o ilustre pernambucano todas as máscaras. A segunda sombra, poética ou selvagem, a que se refere um personagem do Mia Couto.

Há 100 anos, Careca e Freire Junior satirizaram Artur Bernardes, então candidato a presidente da República, com a marchinha carnavalesca Aí, seu Mé. O povo cantava: Aí, seu Mé!/Aí, seu Mé!/Lá no Palácio das Águias, olé/Não hás de pôr o pé. Bernardes, que não gostou da brincadeira, chegou a convocar forças militares para reprimir a cantoria. Desde cedo, já se vê, o mau humor oficial e o ânimo censório espichavam olho gordo nas crônicas musicais.

Será que hoje é diferente? As marchinhas praticamente desapareceram, outras entraram na mira revisionista dos que “problematizam” o deboche carnavalesco. João Roberto Kelly (Cabeleira do Zezé) e Lamartine Babo (O teu cabelo não nega) são vítimas tardias dos discípulos de dona Solange Hernandes. Carnaval, ouço dizer, é hoje território de sertanejos, sofrências e pancadões, bem ao gosto da cultura das celebridades. Momo virou meme.

No mais, este ano, com o carnaval de rua abolido no Rio (alguém acredita que é para valer?), ao menos estarei protegido das nuvens de gafanhotos, popularmente conhecidos como blocos, que deixam atrás de si uma paisagem peculiar: ilhas de lixo, jardins vandalizados e rios de urina, com afluentes, pororocas e vazões impressionantes. Ureia no poder! Coisa que me faz lembrar uma cena aterradora do filme O iluminado, do Kubrick. Das paredes do hotel fantasmagórico fluía um mar de sangue, com ondas e correntes portentosas. O horror, o horror, ao gosto de Joseph Conrad.

Para quem gosta da monarquia momesca, bom proveito. As “festas particulares” custam R$ 700 ou mais. De brinde, perdigotos enriquecidos com doses variáveis de coronavírus.

Abraço. E coragem.