Quando o apito/da fábrica de tecidos/vem ferir os meus ouvidos (Três apitos, Noel Rosa)
Meio-dia. O longo apito não falhava. Hora do almoço para os operários da fábrica da Brahma, que ocupava uma grande área nas imediações do rio Maracanã. Uma vez por semana, minha mãe aguardava aquele sinal sonoro, aproveitava o intervalo na jornada de trabalho e ia para o portão principal da fábrica receber sobras de levedo de cerveja. Na época, era um suplemento vitamínico popular e a mãe judia, preocupada com o aspecto tísico do Menino, reforçava as defesas do pequeno. Na batalha por um aspecto mais aceitável para os muito rigorosos padrões estéticos familiares. Sempre detestei cerveja, só bebo, pouquíssimo, nas chamadas ocasiões sociais. Associação inconsciente com aquela gororoba vitamínica? Será que alguém renunciou a um bolinho de bacalhau por ter tomado Emulsão de Scott na infância?
Associo o apito da Brahma com outros ruídos no meu painel afetivo-sonoro. A caminhonete do ferro-velho, ela mesma candidata a virar sucata. O carro da pamonha, quentinha! Os berros do garrafeiro português, empurrando o burro sem rabo e tamanqueando no chão duro. O trac-trac da matraca do baleiro, que vendia longos pirulitos cônicos de açúcar queimado e biscoitos de casquinha. Os gols comemorados na linha de passe. Eram ligeiras, quase gentis, quebras no silêncio dos dias. A cidade parecia permitir o isolamento de quem precisava viajar para dentro de si.
Durante a fase mais dura da pandemia, comércio fechado, pessoas trancadas em casa, ganhamos de presente o silêncio, que jazia em fase terminal na cidade enlouquecida. Reaprendemos a olhar árvores e ouvir sinfonias do passaredo. À noite, foi possível curtir Erik Satie sem a interferência etílico-neurótica dos bebuns na esquina. Sei, sei, o custo disso foi alto. Medo da peste, isolamento dos amigos e familiares, insegurança sobre o futuro. No entanto, por um breve período, tive a dimensão do que se perde na convivência forçada com certos barulhos. Os de bares, por exemplo.
No Rio, os bares voltaram ao batente. São vistos pela mitologia urbana como símbolo da carioquice. Alegres, descontraídos, convidativos. Em nome dessas virtudes, espalham terror nas áreas densamente habitadas onde funcionam. Ninguém pretende que os frequentadores se comuniquem por sussurros. No entanto, a aglomeração, obrigatória, favorece uma elevação descontrolada de decibéis, abastecida por quantidades industriais de álcool. O resultado, para a vizinhança, é o Inferno de Dante. Ah, mas é em nome da carioquice, da extroversão de um povo que se diverte e gosta de bater papo! Será a mesma que levou ao trucidamento do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe? Existirá mesmo uma carioquice? Adiante.
Para piorar a situação, gravita em torno das mesas festivas toda sorte de “músicos”, em geral medíocres sopradores de trombone, espancadores de pandeiros, assassinos de atabaques, violões e repertórios. Não respeitam volumes e horários. Sem qualquer limite, já começam a amplificar sua obra corrosiva com caixas de som obscenas. Os bares, claro, preferem fingir que nada está acontecendo. Se o faturamento vai bem, nada mais interessa. São sócios do caos. Vizinhos? Ora direis, para que pensar nos vizinhos? Em nome da carioquice. Sei.
No dia 13 de outubro de 1985, foi publicada a crônica A extraordinária musicalidade do povo brasileiro, do João Ubaldo Ribeiro. Com a tradicional ironia cortante, Ubaldo rogava todas as pragas contra os que violentavam a paz e o silêncio em lugares que pediam moderação e introspecção. Chegou a mudar de emprego por não suportar um carro de som que lhe atazanava, diariamente, o juízo. Ao final, perguntava: “Qual será a pena para quem for pegado destruindo caixas de som a tiros de rifle?”. Não vou, claro, pegar em armas, nem convocar uma cruzada contra a metástase barista. No entanto, posso me juntar ao ectoplama do itaparicano e inventar diariamente pragas pesadas e impublicáveis contra os estupradores de silêncios em lugares públicos. Crime de lesa-sensibilidade.
Ao reivindicar um pouco de sossego, posso estar sendo radical. Há artigos que vão se tornando naturalmente obsoletos. Quem ainda manda cartões postais? Ou leva radinho de pilha para o Maracanã? Existirá alguém que ainda tome as Pílulas de Vida do dr. Ross? Algum peladeiro insiste em passar sebo na sua bola de couro? Bem, é possível que paz e silêncio na cidade já estejam na categoria de animais em fase acelerada de extinção. Talvez o que reste a fazer seja repetir Bandeira: tocar um tango argentino. Bem baixinho. Para não cair em contradição.
Abraço. E coragem.