Leo Aversa é dos bons cronistas da nova geração. Dois de seus últimos textos falam de perdas dolorosas. Em ambos, Leo não se deixa dominar pela melancolia. No desta semana, dialoga com uma mãe traumatizada pela perda de um filho num acidente. Ele, como eu, acredita no poder de certas memórias para aliviar a ausência definitiva, elaborar o luto necessário, superar, parcialmente que seja, o corte. Não são as lembranças de datas protocolares, registradas em fotos idem. São os pequenos gestos, o encanto inesperado, o cafuné na hora certa.

Quando quero lembrar da família original, faço um grande esforço. Com raras exceções, ela era parcimoniosa no riso. Esta seriedade deixou marcas. Em dois momentos especiais, no entanto, encontramo-nos no afeto e na muda compreensão dos nossos olhares. A Tia Sorridente tinha uma pequena estante repleta de livros. Quando a visitava, eu flertava com aquelas lombadas coloridas, onde reinavam Narizinho e meus sonhos. Pois ela, alma leve, me abriu a porta daquele móvel antigo e permitiu que levasse tudo o que quisesse, sem prazo para devolver. Mergulhei no paraíso lobatiano e até hoje tento reencontrar a mesma sensação.

Meu pai e meu tio foram sócios de uma pequena loja de móveis em Angra dos Reis, quando ali era pouco mais do que uma colônia de pescadores. Ambos viajavam para lá mensalmente, numa rodovia acidentada. Certa vez, eu e um primo acompanhamos nossos pais. Tinha chovido muito, a estrada ficou interrompida por uma barreira e voltamos para o Rio. O jeito era ir até Mangaratiba e lá pegar um barco até Angra. Nessa volta, saí completamente da rotina. Dormi na casa dos tios num estado de tal excitação que parecia flutuar na cama. Dia seguinte, embarcamos em Mangaratiba. O mar estava agitado, como se quisesse abraçar-me do seu jeito. O barco sacolejava, vi gente pálida, verde, assustada. Fechei os olhos, vesti-me da coragem de intrépido pirata. Sorri, imaginei mãos dadas com adultos sisudos que, por breve e líquido momento, também sorriam. O Menino que desembarcou em Angra já não era eu.

Entre os prejudicados pela pandemia, tenho especial sintonia com o drama de uma geração de estudantes forçada a ter aulas à distância por dois anos e privada do contato com amigos e familiares. Impossível contabilizar o estrago afetivo e de desenvolvimento emocional. As memórias que criam redes de sustentação psicológica, encurtadas pelo estreitamento das fronteiras cotidianas, não saem ilesas de toda essa encrenca. De qualquer forma, algo se cria. Capenga, parcial, um tanto empobrecido. Logo no início da pandemia, todos trancados dentro de casa por meses, meu neto mais novo, tiquinho de gente, pegou um banquinho, subiu nele e, próximo à janela, disse que queria “ver a cidade”. Para ele, os galhos das árvores, os telhados das casas, o movimento de carros e gente, eram “a cidade” possível. O “mundo” em miniatura.

Quando a situação permitiu, com duas doses de vacina no braço, fomos buscá-lo na escola. Sem avisar. Ao sair, de máscara, como nós, levou um tempo para perceber quem éramos. Finalmente reconhecidos, foi literalmente uma explosão. O alvoroço da bemquerença. Correu em nossa direção, abraçou, tentacular, nossos joelhos, falou para o pessoal da escola “meus avós!” e saiu correndo pela calçada, indo e voltando. Tinha muitas formas de expressar o sentimento represado por tanto tempo. A “cidade” se materializava ali, se completava, e, suspeito, se transformava num fiapo de memória que não desaparecerá.

O neto mais velho não mora no Rio. Sei que também sofreu as consequências do isolamento, início de adolescência é pedreira. De que se lembrará ao pensar no avô? Houve um momento especial, e aconteceu já na cidade onde mora hoje. Antes da pandemia, visitávamos a família e ele me pediu que fossemos a um lugar para comer um cachorro-quente “especial”. Fomos. No caminho, abraçados, abriu um enorme sorriso e disse que aquele “era o dia mais feliz da minha vida”. Vejam vocês o poder sedutor de uma salsicha! Comeu o sanduíche como quem devora um banquete pantagruélico. Voltamos merecidamente satisfeitos.

Fragmentos antigos e nem tanto, que me dão forma e aproximam de quem quero. Apagam sombras e ajudam a dar sentidos para a vida.

Abraço. E coragem.