Me deixou com os braços pendurados no ar, abraço implodido. Foi direto para minha poltrona predileta, ajeitou-se como imperatriz solene e apontou-me o sofá ao lado. Senta aí, vovô. Resignado, fui ouvir o que a neta querida tinha para trocarmos. Sim, gostamos de trocar, tricotar sensações, medir humores, contar novidades. Naquele dia, veio armada com folhas em branco e uma pasta amarela que parecia vazia. Leitora voraz desde cedo, ela já ensaia suas próprias histórias.

Com voz afetuosa, mas firme, ordenou: me dê uma ideia para escrever um livro. Surpreso, ela mesma é uma usina permanente de boas ideias, tentei entender. Escute lá, se você quer mesmo escrever um livro, a ideia tem que ser sua. Senão, não vai ter a menor graça. Não se perturbou. Então, vamos combinar o seguinte. Eu escrevo, mas você faz os desenhos. Eu, um ilustrador! Tudo bem, sempre rabisquei umas coisinhas, mas daí a dar forma gráfica a personagens e situações…

Aos poucos, fui percebendo, maravilhado, o bastidor daquela conversa. Minha pequena está apaixonada pelo jeito com que se transformam palavras em páginas impressas, com capa expressiva e, sobretudo, o nome do escritor bem destacado. Ela está ansiosa para ser sócia deste clube. Mas tem que ser “livro de verdade”, não servem versões espiraladas. Encontrar alguém que, tão precocemente, demonstra curiosidade pelo processo de produção de um livro, candidatando-se ao vício permanente da leitura, não é fácil.

Que tempo viverá minha neta para usar seu claro talento literário? Como em qualquer época, haverá assombros e chiliques, fantasias e pesadelos. Agora mesmo, estamos testemunhando o nascimento de uma era revolucionária na medicina. Um homem acaba de receber um coração de porco, depois de uma recauchutagem inédita no órgão do animal. Até aqui, tudo está correndo bem, o receptor ainda não grunhiu, nem pediu para mergulhar no lamaçal da esquina ou fazer figuração num desenho da Pepa. Trata-se de mais uma importante ajuda suína à saúde humana. Válvulas cardíacas de porcos há muito habitam corações danificados de homens apaixonados. Insulina proveniente de pâncreas suíno é a mais semelhante à produzida pelo corpo humano. Pele de porco tem sido usada como enxerto em pacientes queimados.

Essa proximidade benigna com nossos irmãos de quatro patas questiona a imagem que fazemos deles. Quando queremos dizer que algum aparelho, por exemplo, é de má qualidade, como o chamamos? Bela porcaria! Injustiça número um. Se uma pessoa, pelo simples prazer de contrariar, contesta tudo, como a chamamos? Espírito de porco! Injustiça número dois. Quem George Orwell usou para metaforizar tendências totalitárias na Revolução dos bichos? Os porcos! Injustiça número três.

Você, minha neta, poderá viajar muito para ouvir as histórias que o humano profundo guarda em lugares improváveis. Certa vez, mochila nas costas e grana pouca no bolso, fui indo até a fronteira de Pernambuco com a Bahia. Era o rio São Francisco. De um lado, Petrolina, do outro, Juazeiro. Andei, andei, infelizmente pouco conversei. A gente que circulava por lá devia me achar meio esquisito, um riponga fora de lugar. Fotografei tudo nas retinas, mas faltou conversa. Talvez algum dia, querida neta, você descubra que a viagem principal é aquela que a gente faz para dentro de si. Nessa aí se aprende a respeitar silêncios e a contar com a poesia para desvendar os mistérios que importam.

Jamais se preocupe com cobranças excessivas. Se a sua maneira de estar no mundo for, sobretudo, através da palavra, apenas obedeça este dom. O universo conspirará a teu favor. Existiu, nos Estados Unidos, um grande artista popular. Ele se chamava Woody Guthrie e deixou uma obra que vale a pena conhecer. Num de seus poemas, ele reflete sobre os rumos da vida. Alguns pedaços (sem tradução): Well I’m gonna work in this world/The best I can if I can/I’m gonna clean up this world/The best I can if I can/I am gonna talk in this world/The best I can if I can. Siga a trilha do velho Woody.

Enquanto ainda estamos aqui, nessa mui desleal cidade de São Sebastião (copyright Antônio Maria, um pernambucano cardisplicente que um dia você ainda vai conhecer), fique à vontade. Compartilho minha poltrona predileta, meus achados desimportantes, meu espírito que está avariado mas, garanto, não é de porco.

Abraço. E coragem.