Diante do ataque ininterrupto à Democracia e aos Direitos Humanos que verificamos no mundo, em especial, nos Estados Unidos, Itália e Brasil, sobretudo com legitimação religiosa, pergunto-me ainda: há mesmo quaisquer relações e afinidades entre Religião e Direitos Humanos? Venho abordando alguns aspectos e facetas desses questionamentos há muitos anos, promovendo ou colaborando com encontros, congressos e outras atividades. E, se há afinidades entre Religião e Direitos Humanos, pergunto: são construtivas ou negativas? Minhas inquietações sobre esse tema transbordaram da investigação meramente particular, e alcançaram grupos e atividades ligados ao Direito e ao Judaísmo.

Por conta disso, ministrei aulas e minicursos, e fiz alguns debates, palestras e exposições. A investigação sobre o fenômeno religioso multicultural e suas relações com a Política e o Direito, em especial, com os Direitos Humanos, principalmente nos tempos atuais em que se percebe um forte vento de fascistização e, por isso mesmo, de destruição de direitos humanos e relativização de direitos fundamentais, leva-nos ao debate sobre o assunto.

A política, uma vez deteriorada e democraticamente fragilizada, abre-se à fascistização, e, para sobreviver, invoca pressupostos religiosos como fundamento do fascismo, expõem-no Gentile e De Felice em seu A Itália de Mussolini e a Origem do Fascismo, e encanta o imaginário religioso cristão popular, como atualmente fazem políticos, a fim de destruir direitos com frases e ideias de efeito, como as que povoaram os recantos europeus no avanço e fortalecimento do fascismo mussolinista e do nazismo hitlerista, na primeira metade do século XX.

A ideia de que uma religião é maior, ou melhor, quando defendida em plateia popular, como fazia Mussolini, tem por objetivo único despertar a relação de simpatia, unidade, proximidade e, finalmente, domínio. É a mesma Igreja que sempre desfrutou de um reconhecimento oficial, institucional (e até jurídico), como lembra Ênio Brito, da PUC/SP, com seus valores sociais e culturais, mas usada pelo poder temporal para manter o status quo, no cenário político. Em 1924, em um de seus discursos em defesa do regime fascista, disse Mussolini:

L’unità religiosa è una dele grandi forze di un popolo.

 Para Leandro Konder, houve um clerical-fascismo na Igreja Católica da primeira metade do século passado, com as alianças feitas entre a Igreja e o Estado Fascista de Mussolini. Antonio Gramsci faz uma nota e, depois, desenvolve o assunto, sobre o posicionamento da Igreja, inclusive, por uma Carta oficial do Cardeal Pacelli com resumo do Discurso do Papa, segundo o qual não havia incompatibilidade entre a ação Católica e o Partido Nacional Fascista. Realmente, lembra Konder, Mussolini pregava o princípio intrínseco religioso da italianidade para fundamentar seu Estado fascista:

“lançar as bases da grandeza italiana no mundo, partindo do conceito religioso de italianidade”

A relação entre a Igreja e o Fascismo mussolinista não foi outra coisa senão a cruz e a coroa entrelaçadas, indissociáveis, numa relação simbólica, amalgamando economia, religião e política. Aqui cabe uma reflexão prévia sobre as afinidades eletivas entre Igreja e Estado Fascista, e, assustados, perguntaríamos se isso é possível, pois em uma olhadela a priori não parece haver sequer dialética entre uma situação e outra, pois na dialética ainda há um encontro para a evolução das ideias. Porém, a resposta fica clara se considerarmos a instituição Igreja e a instituição Estado, não seus pressupostos ideais: Evangelho de Jesus e Política.

Afirmo muito simplesmente que, tanto para a Igreja quanto qualquer outra instituição religiosa, entre as quais, a comunidade judaica, faz-se necessário romper e trair, explicitamente, seus valores e princípios, respectivamente, de Jesus e Moisés, para conseguir comungar com um Estado fascista ou nazista e, de resto, com qualquer Estado autoritário, antidemocrático, militar, impositivo e que não respeita a pluralidade. É uma mentalidade que permeia a ideologia da conquista e, tanto na Igreja quanto no Estado, ambos fascistizados, o que se leva em conta é a homogeneidade, unidade religiosa e desprezo por quaisquer formas de pluralismo religioso e civil, porque o pluralismo, em qualquer sentido, é necessariamente antifascista.

De fato, em 1929, houve uma aproximação e acordo de “paz” entre a Igreja e o Estado fascista que, segundo Mussolini, tinha sido feito pelo Fascismo, porque para ele essa reconciliação entre a Chiesa e o Stato era de importância excepcional, tanto para o indivíduo quanto para a coletividade nacional. Sobre esse fato, disse ele em 1936:

“Grandioso evento quello dell’II febbraio 1929 che suggellava la pace fra Chiesa e Stato. Era un problema che pesava da sessant’anni sulla coscienza della Nazione. Il Fascismo lo ha risolto. Tutti quelli che lanciavano dei presagi oscuri sull’avvenire, sono rimasti mortificati ed umiliati. È di una importanza eccezionale  nella vita di un Popolo che Stato e Chiesa siano riconciliati nella coscienza dell’individuo e nella coscienza coletiva dell’intera Nazione.”

Poderíamos avançar sobre as afinidades entre religiões e Direitos Humanos, o que nos leva, por experiência histórica, no sentido contrário, a outra questão: quais são as afinidades entre religiões e fascismo? Por outro lado, é também possível um processo de resistência e emancipação, ou de fortalecimento dos direitos a partir da religião – vista por outro ângulo.

É a pergunta que me fiz, por uma questão inicialmente particular, que diz respeito ao Judaísmo nesse cenário político e de Direitos Humanos. Outra pergunta diz respeito a quaisquer religiões e suas contribuições aos Direitos Humanos e, assim, para o processo que envolve mudança e emancipação. Neste sentido, Clifford Geertz traz interessante reflexão sobre

“a importância da religião como componente das mudanças sociais, e não mais considerada simplesmente como obstáculo a essas mudanças, nem como voz, obstinada e condenada, da tradição, faz da época atual um momento especialmente gratificante para a espécie de pesquisa que acabo de invocar”

Conforme Pinsky, as religiões deveriam servir mesmo para aperfeiçoar o ser humano, mas, infelizmente, têm sido (até aqui) responsáveis por massacres, torturas, guerras, perseguições, intolerância e outras atrocidades em nome de Deus. Hoje, isso não poderia acontecer com a Igreja, ao menos enquanto estiver sob a orientação humanista e progressista do Papa Francisco (Jorge Mario Bergoglio). Porém, acontece com movimentos neopentecostais no mundo todo, que têm, estrategicamente, uma religiosidade católica intrínseca, um mínimo católico, inclusive com utilização de símbolos católicos e judaicos, como, por exemplo, a cruz e a menorá (candelabro de sete velas) e, no Nordeste, há, ainda, a utilização de elementos característicos dos cultos de matriz africana.

Todos, sem distinção, com um tipo de pregação bíblica reducionista e fundamentalista, profética, moralista com ataques diuturnos às religiões afro-brasileiras e ao movimento LBTQIA+ que identificam, respectivamente, com culto aos demônios, feitiçarias, bruxarias e paganismo sexual, utilizando, para isso, massiva rede de programas em rádio e televisão.

Tal o seu crescimento e desdobramento social e político que os neopentecostais vêm sendo estudados no Brasil, afirma Londoño, desde o final dos anos 90, por conta de um pentecostalismo transnacionalizado. Trata-se de grupos colaboracionistas com pautas autoritárias, homofóbicas, misóginas, racistas, negacionistas, antidemocráticas e de ruptura com Direitos Humanos. Assim como ocorreu ao tempo do mussolinismo e hitlerismo (nazifascismo), tais grupos religiosos, intrinsecamente autoritários, são convocados por uma circunstância impositiva a dizer algo que favoreça o movimento neofascista, a oposição sistemática aos Direitos Humanos e o estabelecimento de uma violência institucionalizada, atualmente com os novos discursos estadunidense, italiano e brasileiro, respectivamente, de Trump, Bolsonaro e Salvini, todos eles racistas, com políticas violentas contra migrantes e contrários ao pluralismo e multiculturalismo.

Mantém-se, ainda, a ideia de emissários de Deus, e pregadores da Palavra de Deus, antes como coordenadas bíblico-europeias, e hoje como pauta impositiva bíblico-americana. São grupos formados por pessoas a que Gramsci chamou de uomo-massa, ou seja, pessoas que vivem simultaneamente com discursos rasos, carências econômicas ou uma necessidade de manter certo status econômico que exclua os diferentes.

Parece-nos claro que um novo fenômeno religioso fascista se verifica atualmente em vários lugares do mundo, em especial, no Brasil e Estados Unidos, respectivamente, com o bolsonarismo e trumpismo.

Com o crescente movimento antidemocrático bolsonarista, caracteristicamente mussolinista, incluindo o apelo à massificação religiosa “deus acima de todos”, pareceu-nos oportuno promover reflexões a fim de debater esse fenômeno e o perigo em relação aos Direitos Humanos.

Contemporaneamente, o mundo está em um processo de fascistização, de perda de direitos básicos e relativização de direitos fundamentais. É notório o ataque aos direitos básicos, tanto individuais quanto sociais. Ou seja, os Direitos Humanos, não apenas sofrem certo desprezo popular e o escárnio da sociedade, mas são vilipendiados. Os Direitos Fundamentais (expressão escrita e positivada dos Direitos Humanos) são triturados diuturnamente com a renovada opressão do Estado e dos entes econômicos e financeiros que o tomaram, ainda que seja por vias formalmente democráticas.

Conforme esclarece Palmiro Togliatti, em seu pequeno livro Lições sobre o Fascismo, o embrutecimento social e econômico italiano da primeira metade do século passado, com a fragilização das instituições e a transformação reacionária das massas populares, sedimentou o caminho para o fascismo. Segundo ele, as forças burguesas se incomodaram com os sistemas democráticos, fulminando-os, porque não atendiam seus propósitos de governo, e sustentaram o fascismo. Há uma derrota da democracia.

Atualmente, há movimentos neofascistas em processo adiantado de fortalecimento, com discursos semelhantes ao fascismo mussolinista dos anos 20, tendo na religião ou religiosização, um de seus fundamentos.

Entretanto, De Felice, um respeitável fascistólogo, considerou que o conceito de fascismo ficasse adstrito ao passado. Por isso, Leandro Konder o criticou, pois, em que pese seus trabalhos sérios sobre o fascismo, pretender, de modo conservador, que o conceito de fascismo ficasse exilado no passado e restrito ao mussolinismo e hitlerismo, é um erro. Para Konder, essa postura propicia a confusão e o enfraquecimento de forças antifascistas, tirando-lhes a capacidade de leitura contemporânea da fascistização e neofascistização, tendo em vista que esse fenômeno pode reaparecer, modificado, na atualidade.

Parece-nos que as características básicas estão revelando um movimento que confirma o texto de Leandro Konder. Muitos têm usado, não apenas um discurso agressivo e de destruição de direitos, mas, também, símbolos nacionais e religiosos nas suas manifestações. Por exemplo, o uso da Bandeira de Israel levantada nas manifestações bolsonaristas antidemocráticas, e a Bíblia, erguida pelo trumpismo estadunidense.

É um processo de religiosização política, assim como ocorreu no mussolinismo. No caso do Brasil, movimentos neopentecostais, entre os quais, aqueles que se intitulam “judeus messiânicos”, têm levado a Bandeira israelense às manifestações antidemocráticas promovidas pela extrema-direita, o que, por si só, merece repúdio.

Apesar do repúdio ao abuso, é uma realidade que cada vez mais se acentua e se fortalece, ainda que o Judaísmo e o Cristianismo nada tenham que legitime o trumpismo e bolsonarismo. Afinal, o que teriam Jesus de Nazareth e seu Sermão da Montanha, e Moisés e sua Torá, com o trumpismo e bolsonarismo – inescondíveis movimentos neofascistas de ataques e desprezo aos negros, aos estrangeiros, às mulheres e outros grupos chamados minorias? A resposta nos parece clara: nada! Não há qualquer afinidade entre os discursos trompistas e bolsonaristas e o Judaísmo.

© Pietro Nardella-Dellova

NARDELLA-DELLOVA, Pietro. JUDAÍSMO E DIREITOS HUMANOS. Tese de Doutorado: PUC/SP, 2021, acesso in A Voz da Esquerda Judaica

 

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

  1. Antonio Gramsci. Note sul Machiavelli, sulla Politica e sullo Stato Moderno. 3ª edizione. Torino: Giulio Einaudi Editore, 1953, p. 306 e pp. 223-307;
  2. Cesare Luporini. Gramsci e la Religione. III Convegno di Studi di Filosofia della Religione. Università di Perugia, Cattedra di Filosofia della Religione, 1978;
  3. Clifford Geertz. O Futuro das Religiões. Trad. Paulo Migliacci. Folha de São Paulo de 14/05/2006;
  4. Spinetti. Sintesi di Mussolini. Rocca San Casciano: Cappelli Editore, 1950, p. 295 (este livro fora publicado em 1937 em defesa do regime fascista, e republicado em 1950, demonstrando que o apego ao fascismo continuou fortíssimo após a II Guerra Mundial, aliás, com é até hoje);
  5. Elizabeth Bruenig. The Last Temptation of Trump: the president brandishes a Bible in front of a church, in search of a divine mandate that isn’t coming. In The New York Times. https://www.nytimes.com/2020/06/02/opinion/trump-bible-speech-st-johns-church.html, acesso em 1/10/2020;
  6. Emílio Gentile e Renzo de Felice. A Itália de Mussolini e a Origem do Fascismo. Fátima C. Murad. SP: Ícone, 1988, pp. 14-15;
  7. Ênio Brito. Anima Brasilis: Identidade Cultural e Experiência Religiosa. SP: Ed. Olho d’Água, 2000, p. 83;
  8. Fernando Torres Londoño. História das Religiões: Breve Panorama Histórico e Situação atual no Brasil. in João Décio Passos e Frank Usarski (org): Compêndio de Ciência da Religião;
  9. Jaime Pinsky e Carla Bassanezi Pinsky (org.). Faces do Fanatismo. SP: Ed. Contexto, 2004, p. 15;
  10. Leandro Konder. Introdução ao Fascismo. 2ª ed.. RJ: Graal, 1979, pp. 16, 103 e 111;
  11. Palmiro Togliatti. Lições sobre o Fascismo. Maria T. L. Teixeira. SP: Ed. C. Humanas, 1978, p. 7;
  12. Pietro Nardella-Dellova. A Bandeira de Israel ou, Judeus de Esquerda Acordem! in A Voz da Esquerda Judaica. https://mauronadvorny.com.br/site/2020/05/03/a-bandeira-de-israel-ou-judeus-de-esquerda-acordem1/ acesso em 1/10/2020;
  13. Pietro Nardella-Dellova. Não confunda o Judaísmo com o bolsonarismo. In A Voz da Esquerda Judaica. https://mauronadvorny.com.br/site/2020/05/06/nao-confunda-o-judaismo-com-bolsonarismo/ acesso em 1/10/2020;

 

NOTA DE ESCLARECIMENTO

Os chamados Judeus messiânicos, em qualquer parte do mundo, são, na verdade, cristãos que se valem de símbolos judaicos, livros de serviços sinagogais, utilizam um vocabulário teológico com palavras em hebraico, entretanto são cristãos evangélicos, que enxergam Israel de um ponto de vista mítico e profético. O grupo foi criado pelo Pastor batista Martin Rosen nos Estados Unidos, em 1973, com o nome “Jews for Jesus” (Judeus para Jesus) com o objetivo de converter Judeus para o Evangelismo, pois acreditam que Jesus só voltará quando todos os Judeus o “aceitarem” como Messias. Hoje, há muitos grupos, inclusive em Israel, e, no casos do Brasil, estão na base de apoio do bolsonarismo.