A noite está tão fria/chove lá fora (Tito Madi)

Estendeu a mão e me convidou a entrar. Excitado para me introduzir naquele pedaço de mundo que eu desconhecia. Essas são as fichas dos meus amigos, aquele peixinho azul é o Dudu, só come comida molhada. De passagem, ganha abraços apertados, o cara era popular. Prossegue a expedição. Lá no fundo está a minha mochila, ali é o desenho do satélite que faz conexão com o Brasil, a hanuquiá é de aço, o metal mais forte que o normal. De repente, no meio da algazarra geral, parou. Olhou um instante nos meus olhos, abaixou a cabeça e jorrou uma lágrima torrencial. Fico de joelhos, ofereço o ombro àquela pessoinha. Soluça, começa a falar em saudades, nas pessoas que não vai mais encontrar todos os dias. Meu neto vive uma transição. A partir do ano que vem, sua escola muda de bairro. A combinação de insegurança pelo novo, perda de situações conhecidas, ruptura de laços, o deixa vulnerável. Mal sabe ele que nossa vida é assim mesmo, formada por retalhos irregulares e escolha de cores. A costura nem sempre dá certo, mas estamos condenados a costurar.

Descemos a escada abraçados. Ou melhor: ele abraçado no meu joelho e eu nada econômico nos cafunés. Já no portão de saída, desaba um dilúvio. Em pouco tempo, a água lambe nossos pés. Quicando feito bola, nos jogamos dentro do táxi. Vamos em silêncio, que respeito. Cada um, não importa a idade, tem o seu tempo para entender o que dói e encontrar formas de superar o maltrato. A chuva não cede.

Porto do Rio de JaneiroHá um século, aportava no Rio o vapor Valdívia, vindo de Gênova. Era uma tarde chuvosa. Malvina, então com dez anos, desce junto com a mãe Regina. O caminho desde Iedenitz tinha sido longo. A viagem até que fora divertida, tanto mar, tanto mar. Os adultos, não entendia muito bem a razão, andavam sempre solenes, interrogativos, pouco falantes. Quando botou os pés na terra desconhecida, sorriu. A chuva transformara o chão em lama, a mesma lama de seus folguedos bessarabianos. Escorregar na película lisa era dos poucos momentos de infância que lhe permitiam.

Samuel as aguardava. Uma espera de dez anos. Saíra de Iedenitz para tentar a vida na Bahia e depois trazer mulher e filha. Por artes de uma epidemia de febre amarela, saiu de lá e veio morar no Rio. A expressão severa dos tempos antigos era a mesma. A vida continuava dura.

O táxi que os levou para São Cristovão foi uma surpresa para Malvina. A começar pela paisagem. Nunca vira tanto verde junto! E aqueles morros! Samuel apontou ao longe o Morro do Castelo, que estava sendo derrubado e seus habitantes expulsos. Os olhos de Malvina não paravam quietos, apesar dos pingos de chuva na janela do carro, que insistiam em nublar a vista. Deu para ver gente estranha se movendo pelas ruas. Não conhecia pessoas com a pele escura, dessas que seriam suas vizinhas em pouco tempo.

Na rua em que foi morar, disseram que faltava pouco para o carnaval. Carnaval? O que seria isso? Não demorou e a aspereza do dia-a-dia começou a se colorir. Grupos de clóvis, homens vestidos de baianas, desfiles de carros, adultos em delírio gritando para abrir alas, confetes caindo como folhas outonais. Quanta cor podia ter a vida. Malvina não só descobriu isso, mas desejou que todos tivessem direito ao arco-íris existencial. Foi, aos poucos, ser gauche na vida.

E as chuvas de verão? Samuel, numa das raras gargalhadas a que se deu direito, disse que ali perto de onde moravam tinha uma praça chamada Bandeira. Com qualquer chuvinha mais forte, o lugar ficava inundado. Os cariocas não perdoavam. A praça deixava de ser da Bandeira para virar “da banheira”.

Pulando carniça PortinariUm dia, Malvina foi convidada para uma brincadeira que acabara de desembarcar em São Cristovão. Pular carniça. Uma criança se dobrava, colocando as mãos nos joelhos. Outra vinha correndo e, apoiando-se nas costas da que estava curvada, pulava por cima, gritando não-sei-quê. Caramba! Ela conhecia aquilo de Iedenitz, era a Katchura. Entrando no clima, Malvina correu para o amigo que estava com o corpo dobrado, saltou sobre ele, e gritou, com sotaque bessarabiano: Katchura! Monta na bura! Pronto. A partir daquele momento, estava diplomada, definitivamente, em Rio de Janeiro.

A chuva começa a ceder. A água parece ter limpado a alma triste do meu neto. Descemos do carro já no modo jogo de amarelinha. Não chegamos a ver o arco-íris, mas foi ele que abriu a porta do prédio.

Um abraço. E coragem.