Tá bem, digamos que Deus existe. Mas é evidente que fez tudo isso aqui sem a menor atenção e foi tratar de outra coisa (Millôr Fernandes)
Como diziam o Cony e a turma do Pasquim, nesta época do ano os sinos começam a bimbalhar e coisa e tal. Antes símbolo de tradições religiosas, hoje são a senha para o frenesi consumista. Papai Noel é garoto-propaganda da Coca-Cola, na mesma toada em que o hino dos partigiani é profanado para vender panetone. O único imperativo moral do capitalista é o lucro. Se, para isso, tiver que castrar ou ofender tradições/significados, ele o fará sem qualquer dor na alma. A imagem do Che Guevara estampada em camisetas já encheu de dinheiro as arcas da classe que o revolucionário combateu até a morte. O barbudo, que levou a sério o internacionalismo, acabou transformado em pop star, roqueiro sem guitarra, rebelde sem substância. Inofensivo.
Nada inofensiva é a crescente promiscuidade entre religião e Estado no Brasil. Não bastassem os crucifixos que adornam espaços do Poder Judiciário, em flagrante afronta ao Estado laico, tornou-se cada vez mais frequente orar em cerimônias governamentais. O carnaval patético que envolveu a aprovação do pastor André Mendonça para o STF, com direito ao transe da dona Michelle, está longe de ser fato isolado. Quando ele disse que sua aprovação tinha sido “um salto para os evangélicos” sabia exatamente do que estava falando. Estamos lidando com um fato político que ultrapassa as eleições. Não se trata de preconceito contra evangélicos, há muitos deles que professam sua fé sem entrar em jogos de poder e riqueza suspeitos. Ocorre que os grupos que parasitam o Estado têm um projeto de poder que, implementado, faria o país caminhar para uma teocracia. Do tipo muito bem caracterizado pelo próprio André Mendonça, quando, numa fase crítica da pandemia, lutou contra decretos que vetavam aglomerações em templos. Em arroubo fundamentalista, bravateou que os cristãos estariam “dispostos a morrer pela fé”. Saudades do Coliseu?
A cultura teocêntrica tem gerado, ao longo dos séculos, filhotes que convidam à resignação, ao imobilismo e à fuga ao debate sobre as inconsistências das variadíssimas noções de deus. Nos últimos tempos, desconfiada de establishments religiosos, a classe média inventou “espiritualidades alternativas”. Modelo mais digerível para conversar nos bares e festas. Exemplo claro está em artigo recente de uma jornalista, que afirmou crer “piamente que Deus mora nos detalhes e nos fez para ser feliz”. Estranho, mas isso me levou diretamente ao filme God on trial, produzido pela BBC em 2008. A história gira em torno de prisioneiros de Auschwitz, que montam um tribunal para julgar deus por tê-los abandonado nas mãos dos nazistas. Vou tentar desenvolver essa associação.
Aylan Kurdi, três anos de idade, não queria nada além de uma infância normal. Jogar bola, pular corda, ter o que comer. O corpo frágil do menino sírio apareceu inerte numa praia turca, em 2015. Morrera afogado. Os pais tentaram fugir da guerra civil na Síria, o barco naufragou. Que felicidade o sobrenatural planejou para Aylan?
Na região metropolitana do Rio de Janeiro, 103 crianças foram baleadas entre 2016 e outubro deste ano. Trinta delas morreram. Que régua a divindade, “que mora nos detalhes”, usou para abortar tantos projetos de felicidade? Por que foram selecionados para a extinção?
Durante a Segunda Guerra Mundial, cerca de 1,5 milhão de crianças judias foram exterminadas pelos nazistas. Que critérios o sagrado inquestionável utilizou para tantas condenações a morte? Como entender infâncias interrompidas com crueldade, se a ideia era “ser feliz”? Qual foi o “detalhe” que não percebemos?
Cerca de 160 milhões de crianças no mundo são obrigadas a trabalhar, com frequência em condições degradantes. Direito à infância arruinado diariamente. Espremo os miolos e não consigo ver traço de felicidade.
Dia desses, caminhando rumo ao calçadão da orla, vi um menino. Descalço, passos lentos, quase maltrapilho, expressão com tamanha angústia que me fez estremecer. Seus olhos pediam socorro em silêncio. Mas pedir socorro a quem? Quem o ouve? Quem conversa com ele? Certamente não a entidade imaginária que a jornalista espiritualizada concebeu. A salvação da humanidade virá somente como obra dos próprios homens. Ou não virá jamais.
Um abraço. E coragem.