Existem livros para ler, outros para reler. Finalmente, há os livros para não esquecer como o “Banzeiro Òkòtò – Uma viagem à Amazônia centro do mundo”, da escritora/jornalista Eliane Brum. É não só uma viagem pela maior floresta da Terra como pelos seus habitantes, e pela sua própria vida. É ainda uma reflexão sobre o ser humano: os que só visam lucros a qualquer custo e os envolvidos com a vida, a natureza, os que imaginam um amanhã. Um dos mantras da vida da escritora diz: “É preciso viver com terror e alegria”. Terror porque mais da metade da Amazônia já foi impactada nos últimos quarenta anos pela atividade humana. A floresta está ameaçada, ela que resistiu a cinquenta milhões de anos a vulcanismos, glaciações, meteoros, pode virar uma savana pela ação humana. Alegria porque os processos da floresta são de uma beleza tão impactante como a música de Beethoven ou a poesia de Pessoa.
Tardei uma vida em aprender que as árvores não eram só para brincar ou para darem sombra. Lendo agora aprendi que uma grande árvore lança no ar mais de mil litros de água por dia através da transpiração das folhas. Assim as massas úmidas formam os rios voadores essenciais para agricultura, diminuir a temperatura, e umidificar o clima. A crise climática, segundo as ciências, é o maior desafio da condição humana.
Eliane Brum é conhecida por escrever com entusiasmo e espanto, e sua capacidade de escutar de analisanda. Impacta a história da quilombola Maria do Socorro da Silva, descendente de escravos e índios, cujas lutas se unem nela, pois a Amazônia foi um dos destinos dos quilombos durante a escravidão. Outra história marcante é a de João e Raimunda, que viviam numa ilha e tiveram que sair devido à construção da usina de Belo Monte. João, depois de sofrer um derrame e perder a voz, recupera a fala para contar o que sofreu: “Perdi a ponta da meada. Tô dentro dessa casa hoje, mas, de fato, tô fora, eu não tenho casa… Perdi o rumo de tudo. Quando eu perdi a ilha, eu perdi minha vida… Eu só vejo escuridão”. E foi nessa vivência talvez que começou a nascer a Clínica de Cuidado em Altamira, pois a escritora chocou-se diante de tanta tristeza. Numa de suas viagens a São Paulo, contatou psicanalistas que trabalham com a Clínica do Testemunho. Conseguiu mobilizar um grupo de profissionais que foram a Altamira no Pará para aliviar os sofrimentos da população. Traumáticos são os efeitos psicológicos sobre a população da Amazônia devido aos ataques à natureza, com depressões, angústias e até suicídios de adolescentes. Conclui que a escuta é um ato político da resistência e como as pessoas reagiram positivamente ao serem escutadas.
É sofrida a narrativa de Eliane sobre sua depressão e suas ideias suicidas em Altamira, onde vive desde 2017. Conseguiu superar a crise com ajuda de medicamento e de sua analista (tem trinta anos de análise), além de uma grande amiga. Aos poucos, foi se recuperando, e em 2019 voltou a se casar, com um jornalista inglês. Na verdade, o livro não é só uma viagem à Amazônia, mas passa por Ijuí, cidade onde nasceu, Porto Alegre, São Paulo, e agora Altamira. A autora conclui que: “Temos que nos tornar capazes, principalmente, de imaginar um futuro onde possamos e queiramos viver. Imaginar é ação política. Imaginar é um instrumento de resistência. Imaginar o futuro é agir sobre o presente”.
“Banzeiro Òkòtò” é um livro que convida a imaginação, a libertar o futuro, buscando somas de 1+1+1… entre todos, na travessia de desertos e labirintos. Diante dos terrores que ameaçam o clima, diante dos ódios racistas e das crescentes desigualdades sociais, é preciso lutar com imaginação. Imaginar é um ato de rebeldia com alegria em busca de um mundo com envolvimento, a única forma capaz de enfrentar o terror. O autoritarismo militar e civil não oferece futuro ao povo- já foi assim na ditadura militar- pois esse governo estimula o colapso climático, o colapso das cidades, o colapso social. O amanhã requer imaginações criativas, com bases referências tanto nas artes como nas ciências.
P.S.: A conversa entre o jornalista Bob Fernandes e o amigo psicanalista Edson Luiz André de Sousa sobre o livro “Imaginar o amanhã” já teve mais que dezoito mil visualizações.