I
Os beijos têm diferentes faces, e cores, e sabores,
e duração, e profundidades, e energias, e tessituras, e geografias.
II
Há beijos de amigos que se encontram e beijos de amantes que se
reencontram no vácuo do tempo. Há beijos americanos e beijos
brasileiros, mas, há beijos totalmente napolitanos. Há beijos
religiosos e beijos escandalosos. Há beijos que são ícones da Internet
e beijos de plástico. Há beijos com máscaras e sem máscaras! Há
beijos terapêuticos e psicoterapêuticos. Há beijos de misericórdia
e beijos de piedade. Há beijos de maridos e de esposas e há beijos
de enamorados. Há beijos convencionais e há beijos apaixonados!
Há beijos vivos e beijos necrófilos – beijos de lábios e beijos de
espelho do espelho de toalete! Há beijos que são beijos de homem-poeta
e de poeta-mulher, de homem-Poesia e de Poesia-mulher,
profundos e demorados.
III
Beijos que vasculham o céu da boca, a língua e todos os
lábios, e todos os poros, e os olhos, e as faces, e a pele inteira, e
as mãos, e os dedos, e os braços, e as coxas, e as costas, e os
cabelos, e as orelhas, e o pescoço, e o peito, e os seios. São beijos
que misturam e espalham o vinho, do umbigo ao corpo inteiro, e
escrevem partituras inteiras – são beijos sonoros que avançam
allegretto e se destacam no dueto pleno, entre as vozes dissonantes
da turba tresloucada! Beijos demorados no corredor, elevador,
biblioteca, setor de macarrão, frios e eletrodomésticos – beijos
anticomerciais, beijos apolíticos. Beijos antissociais!
IV
Quais beijos são os beijos da sua boca, querida? São melhores
que beijos virtuais? São melhores que beijos matrimoniais
ou religiosos? São beijos musicais? São beijos desenhados na pele,
umedecida no toque despretensioso e demorado?
V
Conhece os beijos que
nascem das palavras vivas dos poetas? Palavras que carregam
almas de um lado ao outro, de um espaço ao outro. E almas que
carregam corpos. E corpos que carregam ardores. E ardores que
carregam o gotejamento apressado de corpos com almas, absortas
nas palavras do poeta, ditas a quaisquer brisas que sopram sobre
o estacionamento, conhece? Conhece as palavras que brotam do
inimaginável e despreocupado encontro e do beijo que fica entre
os desenhos da face e da boca? Beijos que começam pelo canto
da boca e se estendem aos cabelos, pele e tudo…
VI
E os vampiros sabem o que é o dueto?
E os necrófilos, saberiam o que é o beijo allegretto?
Os vampiros se perderam entre os necrófilos e as pessoas entre
imagens virtuais. Atrás de uma imagem existe uma enfermidade
e entre eles, existem seres vivos, e existem mulheres de corpo e
alma, de espírito e inteligência, de perfume e intensidade. Alguns
nadam na superfície; outros mergulham na profundidade! E aos
que são acostumados à invariável superfície, mergulhar causa
espanto e sobressalto!
VII
O mergulho é o ato de coragem
afeito aos que amadurecem pelo tempo e pela experiência, pela
dor e conhecimento – pela força que nasce quando ridicularizamos
a sociedade que nos cerca com sua amarelada hipocrisia. Afeito
aos que discernem entre o perfume natural da carne em chamas e
o perfume de shopping center! O que pode dizer, querida, sobre
o mergulho? O que pode dizer sobre Eurídice e Orfeu? O que
pode dizer sobre o voo das águias? Tente dizer e passear por este
caminho. Tente descer ou subir, mergulhar ou voar! Ainda que
eu saiba que o silêncio é melhor que a fala, experimente a fala,
enfrente o Poeta e diga sobre os entranháveis desejos da alma
humana.
VIII
Sabe mergulhar? Tem fôlego para ir ao fundo, onde apenas
seres de verdade se encontram e se descobrem, onde pérolas se
fazem com o ritmo do tempo sem pressa e sem contas? Se nada
sabe de Poesia e se não tem fôlego nem coragem, não poderá
mergulhar com o Poeta nem dialogar diante de quem estende a
mão para o movimento musical. Mas, quando pensar na pérola,
vencerá o medo, e a Poesia se intensificará em seu corpo e lhe
dará vida. Seus poros respirarão dentro das águas profundas.
IX
Não é uma lição – é um fogo de vida e intensidade! O Poeta não
ensina – o Poeta vai! Ele leva você a ver do alto, a voar alto, a
mergulhar, a mergulhar ao fundo. Quer a lição ou o voo? Quer o
conceito ou o mergulho? A mágica da Poesia é receber asas de
águia, para voar alto – quer? E receber fôlego, para mergulhar
com o Poeta ao fundo, e encontrar pérolas – quer, também? Então,
se você ouvir a Poesia e descobrir de que são formados os
beijos do Homem-Poeta, descobrirá a sua Poesia-Mulher, e pedirá
para voar alto, bem alto. E para ver as pérolas que lhe fazem
falta ao fundo, se vencer o medo do profundo.
X
Enquanto a noite não
vem, desenharei as asas que erguerão você ao alto, para o bem
alto, e juntarei o ar de que precisa para o mergulho. E, se o Poeta
estender a mão, diria: sim, Poeta, quero voar alto – leve-me! Sim, quero
mergulhar fundo, leve-me. Leve-me às pérolas, porque preciso de pérolas.
E, se o Poeta levasse você, perderia o fôlego e as asas? – Não,
não perderia, leve-me ao alto porque preciso de plenitude. E se
perder as asas, será trazida de volta à terra. E, se perder o fôlego,
será trazida de volta à superfície. Porque os beijos têm diferentes
faces, e cores, e sabores, e duração, e profundidades, e energias,
e tessituras, e geografias.
Ficasse eu beijando a sua boca neste dia,
acariciando a sua face, de amor rosa – e linda,
bebendo no cálice do seu umbigo o vinho e a água,
e voz rouca, numas horas fugidias, cantando e amando,
explodindo, e ser riso e ser desejo que arde,
e um beijo colado, único, que não finda no entardecer
porque no seu abraço (em que me faço homem que ama)
aperto o laço – para sempre – de jogo, e vida, e ternura,
porque dura o fogo ao meio, e o perfume:
o anseio, em que venço o tempo na tessitura da sua pele
agora ungida, do seu corpo, jardim de flores únicas,
porque repouso, tranquilo, no seio do afago…
e tê-la, nua e úmida, é Poesia que trago para sempre!
ah, principessa, o seu corpo pleno-luz, insinuante e aberto,
rosado e gracioso, sem túnicas…
© Pietro Nardella-Dellova,
in trecho do livro A MORTE DO POETA NOS PENHASCOS E OUTROS MONÓLOGOS. Ed Scortecci, 2009, pp 61-68
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imagem: by Iza Borgonovi Tauil