Com três doses de vacina, já posso ser mais atrevido. Sei que maior imunidade do que essa não será possível tão cedo. Vai daí, dou um tempo na bermuda, desovo calça e camisa que hibernavam, entediadas, há quase dois anos no armário e enfrento a cadeira da dentista. O consultório fica no centro da cidade. Engato uma segunda e caminho pela região que, dizem, foi devastada pela pandemia. Saudade de lugares que me construíram.

A expectativa não era boa. Esperava uma espécie de hecatombe, com trilha sonora do Jards Macalé: Cuidado! Há um morcego na porta principal. Verdade que fiquei apenas nas proximidades do quadrilátero que forma a Cinelândia. Por lá, mesmo que modestamente, a vida ainda pulsa, quem sabe numa homenagem muda aos tempos de belle époque. Algumas lojas fecharam, mas outras, bem tradicionais, resistem. Numa delas, que vende aparelhos, digamos, vintage, como rádios e reprodutores de CD, fiz a festa. Estranho? Ora, ora, eu mesmo não passo de um caminhante vintage, sempre muito desconfiado do excesso de estímulos tecnológicos e enfezado contra a cultura do efêmero.

Não podia faltar a reconexão com a cultura. Desço os caracóis dos seus cabelos, digo, a pequena ladeira em caracol que leva à Berinjela. Não, não se trata de fome antecipada por um babaganoush (há um excelente no Al Kuwait, ali pertinho), mas sim de um dos meus sebos prediletos. Quanto tempo sem ver Daniel e Silvia! Ainda não posso abraçá-los, mas é um alento sabê-los por ali. Quando, à la Lúcia Murat, saúdo Daniel, que bom te ver vivo!, ele, bem no espírito do tempo, estaria sorrindo debaixo da máscara?, me garante que já não há mais ninguém vivo. Somos todos hologramas! Às vésperas do Metaverso, quem pode garantir que ele não está certo? Garimpo cartuns da New Yorker, correspondências entre Ivan Lessa e Mario Sérgio Conti, a história de um ladrão bibliófilo. Centelhas fecundas na aridez pandêmica.

Livro é, como bem disse João Varella, fundador da editora Lote 42, “um raro espaço de absoluta privacidade, sem publicidade, sem algoritmo, sem duvidosos termos de acesso”. Infelizmente, a relação entre livro e leitor está cada vez mais realizada por meios virtuais. Relação muito parecida com a que se estabelece entre um comprador de chocolate e as máquinas automáticas que habitam estações de metrô. Há, no aeroporto de Curitiba, uma livraria totalmente automatizada. O interessado escolhe o livro (todos têm o mesmo preço), passa o cartão na máquina, embala o exemplar num saco plástico. A imagem é de linha de produção fordista versão 4.0. Na novilíngua malandra, as obras à venda são chamadas de “livros de oportunidade”. Não passam dos encalhes velhos de guerra. Tudo em temperatura ártica, pré-ajuste para os avatares que estão em vias de invadir o mercado com a permissão alienada dos viciados em tecnologia eletrônica.

Somos um país esquisito. Sempre se leu muito pouco no Brasil. A média atual é de dois livros por ano (e boa parte da leitura se restringe à Bíblia). 30% da população jamais comprou um livro. Sei que isso é, em parte, resultado da obscena distribuição de renda. No entanto, uma pesquisa recente informou que 84% dos não leitores acham livros desinteressantes. Não há a menor chance de competir, em custo e sedução visual, com a tralha eletrônica. Ao contrário dessa, livros demandam atenção continuada e elaboração dos conteúdos. Com a preguiça induzida por teclas e controles acelerados, como é que se desata o nó?

Em São Paulo, uma biblioteca dá um exemplo de criatividade, amor aos livros e resistência. A Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura está situada, curiosamente, na casa de um coveiro, atrás da capela do Cemitério Colônia. Com acervo de 5 mil livros, ela expandiu seu objetivos, ao longo de 12 anos, organizando atividades relacionadas com os significados de vida e morte trazidos pelos livros. Foram o Sarau do Terror, o Sarau das Mulheres, o projeto Sementes da Leitura. Em fevereiro deste ano, os donos do cemitério decidiram despejar o coveiro, reivindicando mais espaço para os túmulos. Os frequentadores se mobilizaram, conseguiram adiar o despejo e já estão buscando um novo local para os livros. Querem aproveitar o ocorrido para desenvolver outros projetos junto com a biblioteca. Uma horta comunitária, por exemplo. O que parecia ser a vitória da Morte, está se transformando num convite à Vida. Por mais difíceis que sejam as circunstâncias, este caso está a confirmar o que disse o cangaceiro Corisco, no filme Deus e o Diabo na terra do Sol: “Mais fortes são os poderes do povo”.

Abraço. E coragem.