Conceição Evaristo leu “O diário de Anne Frank”, aos treze anos, livro escrito quando Anne tinha treze anos. A leitora ficou marcada na sua vida de poeta e ficcionista, e agora escreveu “Relendo Anne Frank” na revista “Quatro Cinco Um”: “Ler o dia a dia de uma menina judia me convocava ao sofrimento junto com ela… eu, leitora de Anne Frank, me cumpliciava nas angústias dela e de seu povo”.
Conceição é uma construtora de pontes, e num poema refere que a voz de sua bisavó criança ecoou nos porões dos navios, e segue pelas gerações de mulheres negras sofridas até que na voz de sua filha se fará ouvir a ressonância – o eco da vida – liberdade. Constrói pontes entre o ontem, e o amanhã; construiu com Anne Frank uma ponte entre o sofrimento do povo judeu e dos povos africanos, entre a menina judia e ela, uma negra brasileira que trabalhou aos nove anos como empregada. Uma das dimensões que conectam ambas é a solidão humana, uma solidão aprofundada pelo estado de guerra em que viveu Anne Frank. Uma das passagens do diário que tocaram a menina e a escritora foi quando Anne escreveu: “Nunca poderemos ser apenas holandeses, ou ingleses, ou qualquer outra nacionalidade, seremos sempre judeus. E teremos de continuar sendo judeus, mas, afinal, vamos querer ser”.
Anne Frank e Conceição Evaristo viveram em tempos e espaços distantes, e foram se conhecer pelo livro( Anne morreu num campo de concentração em 1945 aos 14 anos) gerando uma relação comovente entre quem escreve e quem lê. Ambas usaram armas simbólicas para enfrentar a violência, e Evaristo lamenta o quanto o mundo adulto não deixou viver uma escritora menina pelo fato de ser judia. Sua identificação como negra maltratada, rejeitada, construiu a fraternidade com Anne Frank. Conceição Evaristo conclui seu ensaio fazendo sua última ponte com os tempos atuais: “Digo também que estamos em dias vazios de humanos sentimentos. A leitura de ‘O diário de Anne Frank’ se faz necessária mais e mais nesses tempos em que a brutalidade e a prepotência de pessoas e grupos imperam buscando se colocar como donos do mundo”.
Donos do mundo, donos do País, donos da natureza e donos do destino de centenas de milhares de famílias mortas, milhões de enlutados, milhões de desempregados. O dono do mundo nos tempos de Anne Frank era Hitler, que se achava acima de todos, lema copiado aqui com prepotência. Anne Frank e Conceição Evaristo são exemplos de luta criativa através da escrita e da leitura, e ambas dizem não aos que se pensam donos do mundo. Essas mulheres são exemplos, pois sempre é tempo de se rebelar contra a servidão voluntária, contra a submissão do silêncio, da indiferença, da neutralidade. Convém sustentar o desejo de dizer não à destruição, a crueldade e o desejo de dizer sim à construção de um possível amanhã. Ou seja: é fácil se dizer hoje contra o nazismo, mas pergunto o que eu teria feito naqueles tempos. E agora, é preciso perguntar, diante da devastação que sofre a sociedade, a natureza, o que cada um de nós está fazendo.
P.S. Está no Youtube a entrevista que Nora Prado fez sobre o livro “Imaginar o amanhã” e algo do meu percurso, é só escrever: Estação Prata da Casa.