Tudo passa, tudo passará/Nada fica, nada ficará (de uma canção composta e interpretada por Nelson Ned, grande sucesso em 1969)

Já aconteceu de vocês estarem lendo um texto sério e, de repente, caírem na gargalhada? Riso solto, não planejado, sem compromisso. Pois foi o que aconteceu comigo dia desses, ao ler a coluna semanal da Ana Paula Lisboa n’O Globo.

Verdade que suspeitei do título, uma referência a mercúrio. Achei que tinha a ver com o velho mercúrio cromo, líquido que curou as feridas da infância ao custo de ardências rubras. Conforme avancei na leitura, percebi que se tratava de um certo Mercúrio Retrógrado. Que diabos seria isso? Segundo os astrólogos, cáspite!, a posição deste planeta no cosmos é responsável por acontecimentos importantes na Terra. Como, por exemplo, o colapso recente e simultâneo do trio WhatsApp, Facebook e Instagram. Faz também, segundo Ana Paula, “caírem as máscaras”. Assim, não seria coincidência, ainda segundo sugere a colunista, que a revelação da existência da empresa offshore do Paulo Guedes em paraíso fiscal e os destemperos do Ciro Gomes acontecessem agora. A culpa, ora vejam só, é da órbita do planetinha laranja-amarelado, que sequer tem uma Lua para chamar de sua. Não resisti, a risada correu frouxa. Cada vez que leio essas patetices, lembro-me de uma frase memorável, atribuída a uma espécie de rei dos picaretas, Phineas Taylor Barnum: “Nasce um otário a cada minuto”.

Quando voltei a mim, reli para ter certeza. Era aquilo mesmo. Valeu, enfim, pela diversão. A mesma que experimentei quando li a parábola de Bertrand Russell sobre o bule de chá chinês que gira em torno do Sol e soube da existência do Evangelho do Monstro do Espaguete Voador (e do racha que gerou a Igreja Reformada do Monstro do Espaguete Voador). Céus, quanta perda de tempo, quanta ilusão, quanto diversionismo. Talvez esteja tudo a esconder os verdadeiros, e às vezes insuportáveis, dilemas de existir. Parecidos com a jornada dos androides em Blade runner, em busca de respostas para uma questão singela: por que raios fomos criados com validade limitada? Tempo, tempo, tempo, diria o Caetano Veloso. Tempus edax rerum, o tempo esse devorador das coisas, diria o poeta romano Ovídio.

Um dia antes de esbarrar na comédia involuntária da Ana Paula, o Leo Aversa, leitura obrigatória de toda terça-feira, lascou um “tudo passa, demora, mas passa”. Tentava consolar uma mocinha desconhecida que ele supunha ter passado por desilusão amorosa. Compreendo que a circunstância pedia compaixão, e mesmo uma pitada de mentira caridosa, mas… Nem tudo passa, mesmo que demore. Gostemos ou não, somos uma combinação incontrolável, indimensionável, de passado e presente. Parte do que foi ainda é, varia o tamanho da herança e a forma como ela se incorpora à vida presente. Tempos que se cruzam.

Vou dar um exemplo dramático, que me impressionou bastante e chocou milhares de pessoas. Anthony Bourdain era um cara prestigiado no mundo gastronômico. Fugia dos clichês da cozinha pretensiosa. Roqueiro, puxado ao punk, sem problema para falar como gente comum, palavrões a rodo, procurava não apenas cozinhar mas entender o que estava por trás de comidas e tradições. Era o tipo de sujeito que qualquer um poderia convidar para um chope e tomar um porre sem a menor vergonha. Apareceu morto num quarto de hotel, na França. Cometeu suicídio, aos 61 anos. Viajava 200 dias por ano, se hospedava em hotéis de luxo, não tinha problemas financeiros. Parece que estava pensando em fazer uma terapia. Por que, então, desistir da vida? Que armadilha o tempo lhe havia aprontado? O que não foi possível transformar para seguir adiante? O que, enfim, não passou?

Comecei citando Nelson Ned, cantor anão que muita gente no meio artístico via como anomalia. Ou seria exotismo? À música citada, prefiro o Lulu Santos de Como uma ondaTudo que se vê não é/igual ao que a gente viu há um segundo/tudo muda o tempo todo no mundo. Essa, digamos, interpretação dialética está mais de acordo com o que sinto. Não há garantia de que tudo passa. Às vezes dá um trabalho danado transformar o tempo que passou em aliado. Nem sempre dá certo, mas vale a pena tentar. Para que a onda flua.

Para não dizer que não falei de flores, devo acrescentar que há um departamento que, para o bem ou para o mal, certamente não passa. Recorro ao auxílio luxuoso de Machado de Assis. No livro Esaú e Jacó, diz o narrador da história: “Tomados daquele invencível desejo de conhecer a vida alheia, que é muita vez toda a necessidade humana”. Sim, meus caros, trata-se da nossa mui conhecida fofoca. O Bruxo do Cosme Velho sabia das coisas.

E tome polca!

Abraço. E coragem.