Talvez nem todos estejam aflitos, mas, pelo que escuto e leio, percebo a vida aflita. São tempos de angústia real, angústia sentida diante de ameaças externas e internas que repercutem em cada pessoa. Essa angústia pode ser traumática, pois os afluxos de excitação excedem a capacidade de absorção psíquica. As angústias reais geram traumatismos provocados pelo desamparo, que acomete a cada um. A realidade política gera, junto à pandemia, uma angustia real no povo brasileiro, onde os pobres, como sempre, são os que mais sofrem.
Recém estive numa ferragem comprando um pincel e escutei um senhor, falando da viagem à Dubai dos familiares do Presidente. Um senhor se disse arrependido de seu voto, pois pensou que o eleito iria trabalhar. Então perguntei se alguém que não trabalha vinte e oito anos, de repente pode se transformar em trabalhador. O desconhecido disse que não, confessou que votou mal e o dono da ferragem concluiu: “Parabéns, o senhor reconhece que errou e muitos precisam ainda aprender”.
Estamos aflitos, pois no passado ocorreram invasões: a portuguesa, francesa, holandesa, mas agora os novos invasores são bilionários com apoiadores armados, o Congresso, entre outros. Estamos aflitos porque nas ruas vemos como a pobreza voltou e com ela a fome. Vivemos um estado de calamidade, e se 2021 está difícil, há incertezas e ameaças para 2022.
Compartir as aflições alivia, é preciso não se isolar na dor. Tenho uma amiga viciada em ler, outra está cada dia mais religiosa, já um amigo se prepara para deixar o país. Aqui a gente escreve, lê, clica, e comparte, são redes para enfrentar as tormentas. As redes tecidas de parcerias na travessia de desertos e labirintos, porque não estamos condenados a um mundo de pesadelos. Sem laços amorosos, os nós da solidão apertam os horizontes.
Uma vez li que os amigos afastam a morte e diminuem as aflições, verdades que comprovei, mais uma vez, ao ver o filme “Dois Tempos” do diretor Pablo Francischelli. O documentário emociona, relata a história de dois amigos músicos: o argentino Lucio Yanel e de Yamandu Costa seu discípulo. Os dois fazem uma viagem de 700 quilômetros do interior do Rio Grande até a cidade de Corrientes na Argentina para tocarem num festival. Paisagens do pampa, do rio Paraná, de pequenas cidades, no meio das conversas sobre o destino, ora permanecem em silêncio, tocam e riem pela alegria de estarem juntos. O cineasta valoriza os momentos de ternura entre um pai e um filho simbólico, onde um ampara o outro. Lucio viaja preocupado como Yamandu dirige, que por sinal dirige bem. E o filme tem um diretor generoso que faz os espectadores viajarem ao lado dos músicos amigos. O mestre e o aluno festejam uma amizade de quase quarenta anos e quem vê o filme faz parte da festa.
As cenas e as imagens do filme seguiram na minha memória, estimulando a imaginação. Aliás, foi numa conversa, há uns dois anos, que falei, de passagem, na palavra imaginação. Vi na hora o amigo Edson anotar a palavra, não falei nada, mas fiquei pensando na imaginação que logo se uniu ao amanhã. Foi assim que nasceu o título “Imaginar o amanhã”, livro de reflexões, provocações, que com a capa da Alice ganhou um farol radiante na capa.
É preciso diminuir as aflições imaginando novos encontros após vinte meses, seiscentos dias e seiscentas noites. Tenho saudades, estamos saudosos das velhas turmas de conversas sobre a vida, a morte, o tempo, artes, e a traumática realidade. Sim, precisamos nos encontrar, se encontrar, encontros para recuperar os horizontes e brindar a graça de existir.