O Brasil está em sua oitava Constituição (isso mesmo, oitava!) sendo que a primeira é de 1824. De todas as Constituições, as únicas duas realmente democráticas são a de 1946 e, esta, a de 1988. Esse fenômeno revela algumas coisas sobre o Brasil, principalmente que o brasileiro não é afeito à Constituição.

Lembro-me bem, no período da Constituinte, 1987, de como alguns grupos sociais, entre os quais, a TFP, tratava o projeto da nova Constituição com desprezo. Houve muitos embates, mas prevaleceu o texto que, diferentemente de todas as sete Constituições anteriores, estabeleceu como projeto o Estado Democrático de Direito, os Direitos Fundamentais e uma República plural, laica, diversa, impondo-se o equilíbrio entre a livre iniciativa e os valores sociais do trabalho, entre a propriedade e a função social da propriedade, entre homens e mulheres e, ainda, entre Núcleos familiares diversos.

Para uma sociedade que havia criminalizado o pensamento de Esquerda, as lutas sociais, mormente dos trabalhadores, a diversidade sexual e o pluralismo religioso, realmente pareceu odiosa a nova Constituição. A Constituição se impôs, desde o grito sonoro e perpétuo de Ulisses Guimarães, por  ocasião de sua promulgação: “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”, e continuou a se impor, propiciando a aprovação de uma série de leis de inclusão social, defesa das minorias, combate às desigualdades e ao racismo. É um processo irresistível democrático que vai fortalecendo os alicerces do Estado de Direito.

Mas, o Brasil real, formado, nos seus primeiros quatrocentos anos, por comerciantes portugueses (chamados de brasil-eiros), brancos degredados nascidos nestas terras (chamados pejorativamente de brasilianos, embora este fosse o nome correto da nacionalidade) e os povos originais da terra (brasilienses) e, depois, pelos diversos povos africanos escravizados, nunca foi exatamente um encontro plural, solidário e efetivo de povos. Os brasil(eiros) nunca aceitaram com tranquilidade a presença ou a parceria com os outros grupos. A questão da escravidão, e criminalização das culturas africanas, expõe uma das feridas ainda não cicatrizadas.

A classe dominante (e nem uso a expressão “elite”, pois há pouca elite no exato sentido do termo) manteve, com base em uma religiosidade excludente, a separação absoluta, o desprezo absoluto e o espírito de exploração de quaisquer que lhe oferecessem obstáculo ou competição. Isso ocorreu durante todo o século XX em relação aos italianos e, nos últimos anos, em relação às políticas públicas de inclusão.

Trata-se de uma classe, ou grupo disforme, que não apenas domina, e quer manter-se dominando, mas que também odeia, odeia tudo e todos, odeia quaisquer direitos ao “outro”, ao “diferente”. É uma classe que nunca engoliu a Constituição cidadã e seus direitos fundamentais que elevou toda e qualquer pessoa à condição de dignidade, de igualdade, de titular de direitos fundamentais. Trata-se de um grupo que jamais quis ver o “outro” nos mesmos lugares, aeroportos, universidades etc.

A classe dominante (que não é elite, isto é, não é a porção mais evoluída ou avançada da sociedade) sempre quis um governo para si, não sobre si; um governo que pudesse ser conduzido, não conduzir, que ficasse inerte, não que promovesse aqueles direitos previstos no texto constitucional. Governos que implementaram o projeto constitucional, de início (e em certa medida), Fernando Henrique Cardoso (daquele originário PSDB) e, depois, com maior expressão, Lula e Dilma, passaram a ser odiados pela classe dominante. Não porque tivessem sido “comunistas”, já que nunca houve qualquer brisa comunista nos governos brasileiros. FHC, Lula e Dilma foram governos constitucionais, aquele mais liberal; estes mais sociais, mas todos eles constitucionais. Nenhum comunista.

Mas, as bandeiras da Esquerda ou da Social-democracia, tais como igualdade entre homem e mulher, igualdade de gênero, diversidade sexual, justiça social, inclusão social, acesso à Justiça, emancipação dos deficientes (físicos e mentais) da discriminação e isolamento sociais, os direitos sociais e trabalhistas, a educação pública, o reconhecimento de núcleos familiares diversos, a proteção ambiental etc, acabaram por se identificarem com os primeiros dezessete artigos da Constituição.

A Constituição Federal de 1988 veio sendo realizada pouco a pouco ao longe desses anos. Isso não tranquilizou a sociedade, ao contrário, fez despertar todos os monstros, os mais odiosos e perversos, até o ponto de se converter em antipetismo, lavajatismo e bolsonarismo.

Atacar o PT, aplaudir os desmandos e inconstitucionalidades da Lava-Jato e, finalmente, elevar um miliciano à condição de mito presidencial, são sintomas do ódio aos direitos constitucionais, ódio aos direitos sociais, ódio à inclusão, ódio às Universidades públicas.

A derradeira expressão do ódio da classe dominante que sempre acreditou que seus eleitos jamais tocariam nela, pois se considera intocável, soberana, especial, foi escolher o pior dos piores, não para ser seu Presidente. Não. Esta classe não se submete a governos. Mas, para governar com o todo ódio bolsonarista aos “outros”. O ódio pela Constituição, a inimiga da classe dominante, porque a mesma Constituição inseriu, com dignidade, todos os membros da sociedade (ainda que isso não seja, ainda, uma verdade real). Odeia-se a Constituição porque ela é cidadã; odeia-se a Constituição porque ela coloca em pé de igualdade homens e mulheres, gays e lésbicas, pobres e ricos, negros e brancos, umbandistas e candomblecistas, nacionais e migrantes, empregadores e empregados. Sim, a classe dominante que chamava os trabalhadores de “farofeiros” quando os mesmos se dirigiam às praias, agora deve “suportá-los” nos espaços dos aeroportos.

A classe que odeia a Constituição, que se considera intocável, deu ao Bolsonaro uma missão, não sobre seus interesses ou sobre suas vidas, mas, para impingir dor e dissabor aos “outros”. A missão, sabida, era: fira de morte a “negritude”; fira de morte os “trabalhadores”; fira de morte os gays e lésbicas; fira de morte as reservas florestais; fira de morte a educação; impeça o ingresso do pobre e miserável às Escolas e Universidades; impeça o acesso à Saúde; acabe com a alegria dos “outros” e, finalmente, bata forte contra a Democracia (porque a classe dominante não quer democracia nem com ela se dá bem) e bata forte contra a Constituição Federal porque foi ela, a “maldita” Constituição Federal, o odiosa Constituição Federal, que estabeleceu o projeto do odioso Estado Democrático de Direito.