Não faz muito, assisti a versão 2019 do Pinóquio, dirigida por Matteo Garrone. Baseado na história de Carlo Collodi, publicada no final do século dezenove, o filme vira de ponta-cabeça o desenho animado da Disney, estreado em 1940. O clima é sombrio, Gepetto passa fome e vive no limite da sobrevivência, nada de edulcorar o processo de amadurecimento do boneco de madeira, a baleia não passa de um bagre anabolizado que interage com Pinóquio e Gepetto.

Também dos estúdios Disney, o filme 20 mil léguas submarinas, de 1954, é uma tremenda distorção do livro de Jules Verne. O original mostra o capitão Nemo, idealizador do submarino Nautilus, como cientista criativo e ambientalista precoce. Tem, por exemplo, a ideia de plantar fazendas marinhas, multiplicando novas fontes alimentares para o planeta. No filme, ele aparece como vilão inescrupuloso, contraponto irrecuperável para o marinheiro bonitão Ned Land, interpretado por Kirk Douglas. Hollywood não podia viver sem a bipolaridade mocinho/bandido, sem concessões ou sutilezas. Verne, pesquisador do estado da arte das ciências em seu tempo, bufaria na tumba se soubesse o que fizeram com sua obra.

Passei a infância assustado com alguns personagens cinematográficos. A baleia disneyana do Pinóquio era predador implacável. Nada mais distante da realidade. Várias espécies deste mamífero estão ameaçadas de extinção, predador é o Homem. E a bruxa do desenho Branca de Neve, de 1938? Eu me apavorava mais com a rainha, que misturava beleza e perversidade. Havia, nos anos 50, um programa teatral de contos de fadas na televisão, apresentado por Shirley Temple. Quando levaram ao ar a história da Branca de Neve, eu me escondi atrás da almofada quando surgiu a rainha. Em carne e músculos, a imagem aterrorizante ganhando vida. Finalmente, sobe ao pódio a cena do vale dos leprosos, no filme Ben-Hur (que não passa, ao fim e ao cabo, de uma peça de proselitismo cristão). Não consegui ficar na sala refrigerada do Metro. De chagas já bastavam os joelhos ralados e os bifes pendurados na sola, acidentes de trabalho nas peladas da Vila, em cimento mais áspero do que a vida.

Nada, vilão ou monstro, supera o horror de uma tirinha do argentino Liniers, que reproduzo aqui. Nela, Gepetto aparece desejando que Pinóquio fosse um menino de verdade. Em seguida, o boneco, já com vida própria, fala ao celular. Seu criador, fica ali, estatelado, com cara de tacho, lambendo sabão e pensando na morte da bezerra. Solidão. Dependência. Indiferença.

Pesquisas recentes mostram o impacto da dependência de mídias sociais sobre a saúde mental. Especialmente em crianças e adolescentes. Com a massificação do uso de smartphones em geral, crescem a solidão e, bastante associadas a ela, a ansiedade e a depressão. Não se trata de fenômeno exclusivo da pandemia, já era perceptível bem antes dela. Pesquisadores norte-americanos concluíram que adolescentes que consomem muita mídia social têm piores níveis de saúde mental do que os que a consomem menos. Observam, por exemplo, os psicólogos Jonathan Haidt e Jean Twenge: “É mais difícil estabelecer uma conversa casual no refeitório ou depois da aula se todo mundo está de olho no celular. É mais difícil manter uma conversa séria quando os participantes são interrompidos por notificações”. Impressionante como se tornou comum achar que qualquer mensagem no celular precisa ser lida e respondida/comentada de imediato. O mundo passou a viver em estado (artificialmente) emergencial.

Há novas doenças associadas aos vícios virtuais. Na China,  existem clínicas para tratamento desses transtornos. Lá, a dependência dos cacarecos virtuais é classificada como “ópio espiritual”. Lei recente limita em três horas semanais o acesso de menores de 18 anos aos videogames. As empresas de internet que fornecem este serviço são rigidamente fiscalizadas. Não sei se é a melhor solução, mas ela ressalta a gravidade da situação. É importante lembrar o que disse o terapeuta britânico Steve Pope: ficar pendurado por mais de duas horas seguidas num videogame gera no organismo o mesmo efeito de cheirar uma carreira de cocaína.

Convivo mal com este mundo que seduz pela superfície. O desconforto foi muito bem traduzido pelo Marcos Nogueira, do Cozinha Bruta. Ele contou o que aconteceu num grupo de 20 pessoas com quem almoçava no dia do colapso do Facebook & satélites, quantas unhas roídas e lexotans ingeridos! Agitação, rebuliço, expressões de dor, quase pânico. “Como se todos perguntassem: de que vale comer se não podemos fotografar e postar a comida? Para que ir a um restaurante sem fazer check-in no Face? Como tolerar a companhia à mesa sem o dedo nervoso em seis grupos simultâneos de zap? Como, muito tempo atrás, conseguíamos comer com outras pessoas sem acessar as redes sociais?”. Para mim, a própria existência dessas perguntas revela as tripas de uma distopia. Nem mesmo Rod Serling, em seus momentos de alucinação, conseguiria usá-las para um episódio de Além da Imaginação. Seriam vetadas por inverossímeis…

Abraço. E coragem.