Gosto de ler o “Pirke Avot” (“Ética dos Pais”), o livro mais popular do Talmud, com histórias de experiência e sabedoria. Tenho vários “Pirke”, com diferentes traduções, mas a que mais li é a comentada pelo famoso Maimônides, médico e filósofo judeu da Idade Média. Já no primeiro capítulo destaca a importância dos amigos e elogia Aristóteles na sua “Ética”, que dá o lugar mais alto à amizade, que para ele é a condição da vida virtuosa. Escreveu o discípulo de Platão: “Sem amigos, a vida não vale a pena ser vivida”. Amizade ocorre entre amigos que se desejam reciprocamente, são agradáveis um com o outro, encontram prazer. Amizade só existe entre os prudentes e justos, é a mais alta virtude da Ética, é a nossa parte no divino, e faz a pólis imitar a autarquia do kósmos.
Já escrevi que os amigos são os irmãos da vida, os irmãos que encontramos na vida e geram uma cumplicidade empolgante. A partir do Renascimento, a condição humana exalta os amigos Montaigne e La Boétie. Entretanto, o que é mesmo um amigo? Muitas frases para definir essa forma de amor, mas destaco o escritor Guimarães Rosa, que no seu clássico “Grande Sertão: Veredas” escreveu: “Amigo… é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira o prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou –amigo – é que a gente seja, mas sem precisar de saber o porquê é que é”. As conversas nas amizades são essenciais, pois falar desarmado não é fácil, e só com os/as amigos/as é possível falar de tudo um pouco. Desde a infância até a velhice as amizades são essenciais, a vida se encanta na fraternidade, e assim caminhamos na construção do amanhã. Sonhar acordado numa vida com mais leveza, imaginar novas navegações, é dar um colorido ao cotidiano, pois sem amigos não há esperança. Entretanto, não é fácil ser amigo uns dos outros, como escreveu Bertold Brecht em seu famoso poema: “Aos que vão nascer”.
Quase no seu final se refere às amizades: “Ah, e nós, que queríamos preparar o chão para o amor, não pudemos nós mesmos ser amigos”. Inquietante a frase da dificuldade da amizade, logo parabéns a todas e todos que têm amigos com quem compartir o cotidiano, dividir o peso dos problemas e, unidos, criar arte, dividir leituras, dúvidas, impressões. Com amigos a vida vale a pena, são os que aumentam a confiança em novos projetos, e alegria quando algo pode ser concretizado.
Há uns dois meses, chegou o prefácio do livro “Imaginar o amanhã”, escrito pelo psicanalista Paulo Endo. Sua primeira frase é: “Dois amigos celebram a amizade com um livro escrito a quatro mãos em tempos de destruição”. Num certo momento, define o amigo como a garantia do propósito e a certeza da desventura que, talvez, sem ele/ela jamais ousássemos. Conclui que o livro foi escrito pelas tintas da amizade, da esperança e da indignação. O peso da pandemia no meio do desgoverno teve no trabalho de escrever o “Imaginar o amanhã”, o ânimo para seguir a luta. Trabalhar com amigos como o psicanalista Edson Luiz André de Sousa, junto as nossas conversas aqui, são espaços para sustentar os sonhos de outro amanhã. Ah, e se os indignados tiverem só pequenas vitórias, serão sempre os indignos que assassinam gente e florestas, o rosto e a alma diabólica.