A análise do resultado de ontem na Câmara Federal não pode se perder no mais que óbvio foco do mérito em si, na questão da PEC sobre o voto impresso. Penso que foi um fenômeno bem mais complexo e conduzido com maestria pelo deputado Arthur Lira. Que fique claro que estou examinando o quesito competência política, e não qualquer outro juízo de valor, dado que não somos da mesma enfermaria.

Lira foi um mestre da linguagem e transformou a questão do papel em Babel. Falou uma língua que todos os campos entendiam e cada ato, milimetricamente calculado, não deixou expostas quaisquer de suas reais intenções. Mas o produto final é uma grande confusão e muita fumaça onde fica difícil delinear as intenções de cada ator. Daí, o cuidado que devemos ter na análise.

Mas na minha percepção, fica claro que pelo conhecimento que tem de seus liderados e eleitores (afinal, ele ocupa a presidência por eleição), sempre soube que a proposta da PEC não passaria. Mas, por outro lado, Lira não tem qualquer interesse em impeachment ou qualquer outra forma de desestabilizar este governo, que deixa boa parte da direita conservadora em uma posição confortável diante de um executivo genocida, sanguinário, ignorante e pouco inteligente. E a direita golpista tem assim uma ótima oportunidade de jogar fora a roupa do golpe fingindo que vota contra o governo. Assim, Lira jogou para o plenário de forma mais que absolutamente atípica algo que já havia sido decidido na comissão especial que deu um placar de 22 a 11 ou 23 a 11 contra a PEC, o que já era um sinal claro sobre o destino do voto em papel. Ao fazer isso, acendeu uma vela para Deus e outra para algum diabo. Mas a seguir, não aceitou o adiamento da votação, sinalizando, ao meu ver, que conhecia o resultado e que não queria correr riscos.

Alguns vêem como muito expressiva a votação a favor da PEC, 229 votos. Mas, como eu disse acima, neste pacote tem bolachas de sabores diversos. Certamente, muitos foram constrangidos via WhatsApp com ameaças eleitorais para o próximo pleito, principalmente na questão do financiamento. Outros, certamente ameaçados nas liberações de verbas e outros fatores para as suas bases. Um terceiro grupo, certamente sabedor do resultado, votou a favor do governo pelo simples conforto de não confrontar o governo. E por último, mas não menos importante, o grupo dos “sábios”, que também percebendo o resultado mandam um recado para as massas e para o mercado dizendo nas entrelinhas que não haverá impeachment ou outras aventuras, como por exemplo, a aceitação de uma denúncia criminal contra o delinquente da República.

Destaque-se a unanimidade das esquerdas, que deixaram um digno registro histórico e também a vergonha para o PSDB, que desonrou a história do partido, ou pelo menos, as propostas iniciais de um partido que nasceu em um berço intelectual e político privilegiado e que com o 14 a 12 de ontem, somando-se à vergonhosa abstinência de Aécio Neves. Sim, o PSDB é hoje um braço desarmado da extrema direita.

Em síntese, a única coisa ideológica que aconteceu ontem foi o comportamento das esquerdas. O resto, foi o lixão cuidadosamente desodorizado por um grande e habilidoso lixeiro.