O episódio da tentativa de queima da estátua do Borba Gato no bairro de Santo Amaro em São Paulo não chegou a produzir dano significativo ao objeto, e certamente os autores do “atentado” estavam cientes de que o tal do gato mal churrascado não se abalaria. Nada que um bom banho não resolva. Assim, tratar o episódio como terrorismo, ou como “destruição da história” ou mesmo como alguns analisam como sendo um ato de burrice política revela talvez uma grande incompreensão sobre o contexto e os objetivos do fato.
Se as dramáticas fotos que correram as redes atiçaram diversas correntes políticas (inclusive da esquerda) e ganharam tanto espaço na mídia, trata-se então de vitória política. Se política é ocupar espaços, o ato o fez com maestria, e sem qualquer destruição significativa. Em síntese apertada, portanto, não se pode e não se deve tratar o episódio como a “queima do Borba Gato” ou como destruição de patrimônio. Muito menos como burrice política.
Ao contrário, o que se viu (e certamente se previu) a estátua continua lá. E agora, não conta apenas uma história. Conta três. A primeira, óbvia, é a conhecida e divulgada onde o personagem é tratado como herói da formação do Brasil, tendo “desbravado” as terras Brasil adentro. A segunda, menos óbvia, é que a criatura conquistou a terra às custas de assassinatos em massa, estupro, escravização e outros crimes.
Se à época, como pretende Felipe Pondé, a vida era assim, e quem faz a crítica não passa de “bundão” que jamais sobreviveria naquela época, vale lembrar que conquistar o Brasil nunca passou de uma invasão brutal e sanguinária, necessária apenas aos que dela se locupletaram e por ela exerceram seus instintos mais brutais, algo que até onde me consta, não era algo exatamente essencial. Muitas civilizações e agrupamentos humanos existiam à época e até muito antes dela sem que para sua sobrevivência ou estabilidade necessitassem de tantos corpos, butim e sangue. E curiosamente, essa normalização pretendida por Pondé ao justificar a vida do “herói” como algo habitual e ajustado para a época, é o que permeia toda a nossa história e sociedade brasileira atual com todos esses vícios estruturais (e estruturantes, no pior sentido) que sustentam o atual governo genocida, ignorante, obscurantista e brutal.
A terceira história, é a que ficou gravada pelo significativo fato político em imagens, história, e sobretudo, significado. É a que ficou indelevelmente marcada a carvão no corpo do obtuso objeto artístico.
Resta então a compreensão de que o episódio mereceria sim uma certa comemoração e verdadeira reverência à história enquanto entidade viva e que agrega uma poderosa lógica na sua cadeia de eventos. Nada poderia ser mais simbólico e verdadeiramente dialético enquanto força de expressão de um inconsciente coletivo de chagas vivas e sangrantes dos acontecimentos do passado que tragicamente “edificaram” nossa nação, em um processo de construção que culmina no atual genocídio associado à pandemia da COVID-19.
Assim, posso dizer que o episódio me agradou. Pude testemunhar uma sociedade viva, onde por mais que restritos que sejam as pessoas que ali promoveram o ato em termos de representação da sociedade, ali fizeram história, respondendo ao contexto do tempo atual com uma precisão conceitual e simbólica que muito raramente se viu na nossa história recente, se é que se viu alguma. Não haveria melhor dia para aquele churrasco.