Uma das mais importantes contribuições para a compreensão do mundo da política foi dada (surpreendentemente, ao meu ver) pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, quando disse: “Em política, não se deve fulanizar”.
O que quis dizer o provecto político e ex-acadêmico? Simples. Ou não tanto. O que a máxima quer nos informar é que os fenômenos políticos não são pessoais. Ou melhor, não devemos procurar em pessoas aquilo que é uma elaboração de coletivos, para o bem ou para o mal. Nenhum líder se sustenta sem seus liderados, colaboradores, e até mesmo, eventualmente, cúmplices. E mais que isso, ninguém chega à situação de candidato(a) pelos seus belos olhos ou por acaso do destino, embora isto não seja de todo impossível, embora incomum.
Assim, quando se diz “não temos candidatos ou candidatas para votar”, diz-se, corolariamente, que “não temos compreensão da sociedade na qual vivemos e de seus protagonistas econômicos, sociais, culturais, etc.”. Afinal, as proposições que se organizam em torno de uma candidatura emergem de movimentações de diferentes quantitativos e qualitativos nos diferentes níveis de propositura.
No sentido inverso, de nada valem as tentativas de se responsabilizar um prefeito, um governador ou um presidente da república por aquilo que são elaborações absorvidas pela sociedade e pelos agentes do poder econômico que são representados nos respectivos níveis de governo.
Na atual e recente configuração, criou-se em setores da sociedade, por exemplo, a imagem (falsa) do “Lula ladrão”, amplamente desconstruída pelo gigantesco lawfare que não conseguiu provar absolutamente nada contra ele. O que não significa que não houve corrupção na época de seu governo. Houve a corrupção de sempre, que no que dependeu da vontade pessoal do presidente Lula foi combatida com mais vigor e eficiência, pois sua aposta foi nas instituições do estado democrático de direito. Ainda assim, a fulanização em seu nome trouxe uma sequência de catástrofes políticas que resultou na eleição de Bolsonaro, por sua vez, o fulano da vez. Este pode, na melhor das hipóteses, ser diretamente responsabilizado pelo que fala, o que não seria pouca coisa. Mas, ainda assim, tenta-se responsabilizá-lo por todas as catástrofes da atual pandemia. Que não reste dúvida sobre seu envolvimento pessoal neste processo, mas que também não reste dúvida que o projeto genocida recebeu amplo apoio de diversos setores da sociedade, no que se incluem, para o nosso horror, instituições médicas e seus partícipes, entre diversos agentes econômicos, políticos, ideológicos, e paradoxalmente, democráticos.
A resistência do Congresso Nacional e de seu presidente em relação à abertura de um processo de impeachment contra o atual presidente tem, infelizmente, ampla fundamentação na representatividade de seus membros eleitos pela sociedade. Ninguém caiu lá de paraquedas.
E então, o que fazer? Como escolher os caminhos pelas candidaturas?
Não é tarefa exatamente simples, mas certamente a resposta está nas primeiras partes deste texto. Embora não haja resposta única, ela certamente passa pela cuidadosa observação do passado de médio e longo prazo (10-20 anos) examinando-se no contexto da vida de cada um o que de fato aconteceu no país, estado e município em termos dos coletivos, procurando se afastar o máximo possível das perspectivas individuais, que tratam simplesmente dos nossos desejos pessoais e concepções, quase inúteis se pretendemos uma democracia inspirada em bem-estar social e de respeito aos princípios constitucinais refletidos nas práticas de um dado governo.
Apenas esta “desfulanização” nas duas pontas do processo são capazes de apontar caminhos, onde certamente alguém que não passa lubrificadamente pela nossa goela pode eventualmente representar uma força política capaz das melhores transformações da sociedade.
A perspectiva “higienista” da política, filha do moralismo raso e corrosivo, que cria um imaginário onde o mundo político é a realização do antigo mito do “cândido” (de onde vem o termo candidato) é também uma fonte de repetitivas frustrações, pois nesta mistificação encontra-se a negação da realidade humana e de suas contradições internas. A luta pelo poder não tem nada de cândida, e quem quiser experimentar o sabor desta fruta, por favor, sinta-se convidado(a). Participar da vida política é um ótimo remédio para certos delírios dos quais muitos se alimentam e nos conduzem para quadras históricas como a atual.