Eu era uma criança, esse monstro que os adultos fabricam com suas mágoas (Jean-Paul Sartre)

O primeiro olhar engana. Na foto, parecem apenas crianças sapecas, dessas capazes de amarrar uma lata no rabo do gato vira-lata da casa. Ou incinerar os neurônios jogando videogames sem parar. São, no entanto, a linha de frente de um projeto conservador evangélico cujo mercado não para de crescer. O instrumento da doutrinação é a “simpatia” que os rostos singelos de crianças despertam.

Assisti o vídeo de um deles na internet. O menino, pré-adolescente, vestido com roupas de domingo, é bem articulado. Mimetiza gestos, gostos e objetivos dos adultos. Comenta uma passagem bíblica, encharcada de metáforas. Em determinado momento, para dar ênfase à pregação, eleva o tom de voz, histeria pré-fabricada, que reforça a impressão de farsa grotesca daquele teatro absurdo. Simulação de êxtase. A plateia, adultos na maioria, lota o recinto. Parece hipnotizada. Ou seria aflita?

É comum se cobrar cachê para este tipo de apresentação. O pregador mirim costuma ter empresário, que identifica oportunidades para as pregações. É um mercado suculento. Em 1991, o segmento evangélico representava 9% da população brasileira. Em 2010, ano do último censo, já havia pulado para 22%. De acordo com projeções sérias, em 2032 os evangélicos ultrapassariam os católicos como principal grupo religioso no país. O poder político deste segmento, que está longe de ser homogêneo, já se manifesta no espaço de disputa por corações e mentes.

Não pretendo discutir os conteúdos, de resto complexos, do cardápio evangélico. O que chamou minha atenção foi a agressão contra a infância das crianças pregadoras. Adultos sequestram uma fase importante na vida de todos nós, injetando nela conceitos que uma criança não tem a menor condição de compreender.

Este tipo de exploração, covarde por natureza, não é exclusivo do terreno religioso. Não faz muito assisti o filme Judy. A personagem central é Judy Garland, magistralmente interpretada por Renée Zellweger. Em 1939, com apenas 17 anos, Garland foi a protagonista do filme O mágico de Oz. Com a concordância dos pais, submeteu-se aos caprichos do estúdio, especialmente de Louis B. Mayer, que exigia dela um regime de trabalho semiescravo. O resultado foram traumas psíquicos que não a abandonaram até o fim da vida.

O menino segue a pregação. Diz que oferece uma alternativa para a juventude, que, sem os “ensinamentos” de que é porta-voz, cairia no vício e nas tentações mundanas. Esta patranha oportunista, repetida como mantra, me faz lembrar camelôs que vendiam quinquilharias nos ônibus. O discurso era invariável: “Eu podia estar assaltando, até matando, mas estou aqui para oferecer esta maravilhosa caneta…” e por aí prosseguia. No fundo, o pregador mirim e seus mentores têm medo da imprevisibilidade da vida, da construção de projetos pessoais sem garantia de sucesso e sem data de validade, dos mistérios – e maravilhas – da alma humana, do encanto pela curiosidade. Fica tudo congelado por um discurso retrógrado, ameaçador, e pela satanização da dúvida.

Religião jamais significou virtude. Não preciso ir muito longe. Vou visitar apenas um caso recente. Foram descobertos 1.100 corpos de crianças indígenas canadenses, de diversas etnias, na área onde funcionou um internato católico entre 1912 e 1970. Elas teriam sofrido castigos físicos, violência sexual, exploração profissional e racismo. Houve, segundo lideranças indígenas, um genocídio cultural. Em nome de Deus.

Existem muitas formas de se liquidar uma infância. Exterminá-la em ações policiais criminosas. Discriminá-la por raça, religião, extrato social. Confiná-la em habitações insalubres. Obrigá-la ao desterro e à insegurança identitária. Transformá-la em caricatura melancólica do mundo adulto, esterilizando uma etapa de descobertas e explosão de desejos. Tomara que as crianças pregadoras tenham oportunidade para sair da armadilha adulta e entrar na vida real.

Abraço. E coragem.