Nestes tempos sombrios em que a doença, a fome e o desemprego avançam no Brasil, qualquer pessoa de boa fé e minimamente informada reconhecerá o papel crucial do presidente Bolsonaro e sua equipe neste quadro. A negação do perigo que o novo coronavírus representa; a insistência em terapias comprovadamente inócuas; a protelação na aquisição de vacinas; o mau exemplo das suas andanças, sem máscara e aglomerando seguidores à sua volta; o pífio (quando não inexistente) auxílio emergencial aos que mais precisam; a ausência de centralização no combate à pandemia, com ministros despreparados e de atuação desastrosa; os agentes econômicos, combalidos e atordoados com um abre-e-fecha errático, quando outros países já estão liberando com restrições a circulação sem máscara e o retorno às atividades econômicas. Estes e outros comemorativos configuram um quadro de desprezo à sociedade e uma aposta no “quanto pior, melhor”, dentro de um cálculo político perverso para perpetuar seu projeto de poder. Truculento e autoritário, ao defender reiteradamente o AI-5 como instrumento de poder, explicita seu inegável desejo de ser um ditador, acobertado por uma fachada apenas formalmente democrática. Nenhuma dúvida de suas intenções.

Indo além deste ponto pacífico, há uma discussão recente se é possível chamar Bolsonaro e seguidores de nazistas e genocidas. Exagero retórico ou comparação procedente? Sabemos que as palavras tem um peso, e, portanto, esta é uma discussão importante. Como cada um tem sua régua moral, política e ideológica, faz-se necessário iniciar esta discussão com digressões dos três elementos do enunciado.

Iniciemos com o bolsonarismo.  Importante deixar claro que bolsonarista não é necessariamente quem votou em Bolsonaro para presidente, mas quem segue apoiando seu governo e seus métodos neste momento, após dois anos e meio de mandato. Este é obviamente um termo novo, tanto que ainda nem foi incorporado pelo corretor ortográfico do programa Word. Não obstante, já há robusta produção acadêmica sobre o bolsonarismo. Para mencionar apenas uma, em “Notas para a compreensão do bolsonarismo”1, Daniel Aarão Reis credita a ascensão do bolsonarismo à tradição autoritária de nossa sociedade, à evolução da crise da democracia brasileira no período de 1988 a 2018 -em especial após a reeleição de Dilma Rousseff (2014) – e à campanha eleitoral de 2018, de curta duração e baseada em meios eletrônicos. Disseca a aliança do forças que compõem o bolsonarismo (Forças Armadas, milícias, igrejas evangélicas, agronegócio, agentes financeiros ultraliberais), e termina com um alerta familiar aos que estudam o fenômeno nazista (p.9):

Seja como for, não é de se imaginar que o
bolsonarismo vá ser um fenômeno passageiro
ou acidental.  Trata-se de uma força política e
social relevante. E permanente. E mais: em caso
de fracasso, já tem um discurso pronto – “não nos
deixaram governar”. E, certamente, o que é mais
sombrio, não se conformará em ser apeado do
governo por métodos pacíficos e democráticos.
Reagirá usando a força. De que modo e com que
procedimentos concretos, o tempo dirá.

A admiração servil e o apoio cego de Bolsonaro ao ex-presidente Trump e seus métodos estendeu-se à tentativa de golpe deste, ao contestar sem base fatual o resultado das eleições nos EUA e estimular a invasão do Capitólio, com sua trágica consequência em mortes. Não é improvável que Bolsonaro tente o mesmo no Brasil. A campanha pelo fim do voto eletrônico, a facilitação da posse e porte de armas por qualquer cidadão, e a ascensão de Luís Inácio Lula da Silva nas pesquisas convergem para esta possibilidade tenebrosa.

As semelhanças do bolsonarismo com a ascensão do nazismo ao poder avolumam-se. Discurso ultranacionalista, desprezo à democracia (só serviu para elegê-los), estímulo à violência, negação da ciência e promoção de uma pseudociência, ataques à imprensa livre e mentiras repetidas ad nauseam traçam uma linha comum. Não obstante, para muitos há uma distância grande entre chamar um regime autoritário de nazista. Argumentam que nazismo só houve um, e qualquer comparação entre este e o bolsonarismo é historicamente imprecisa, além de desviar a atenção dos reais crimes do bolsonarismo e dificultar seu combate. Nesta comparação entre governos, qual período do governo nazista é referência? À tomada do poder, em 1933? Às leis raciais de Nuremberg, de 1935? Ao pogrom da Noite dos Cristais, de 1938? Ao início do genocídio judeu, em 1941? Por acaso Bolsonaro colocou fogo (literalmente) no Parlamento, como Hitler em 1933? Assassinou seus aliados iniciais, como na Noite das Facas Longas, em 1934?

Os tempos são outros, os métodos, idem. Bolsonaro não incendiou o Congresso: garantiu apoio dos deputados do Centrão com bilhões do dinheiro público, prática antiga, mas que ele levou ao paroxismo. Não assassinou seus aliados: usou o PSL para se eleger, e depois saiu da legenda. Descarta aliados como se joga guardanapos usados no cesto de lixo. Mas nem quero me estender a outras semelhanças. Pretendo focar no nazismo. Desde quando o bolsonarismo é passível de comparações com o nazismo? Desde quando o nazismo é nazismo? Valem seus resultados finais ou suas intenções iniciais?

Tinha como referência de ponto inicial das intenções do nazismo o livro Minha Luta (“Mein Kampf”), escrito por Hitler na prisão, após tentativa abortada de golpe, em 1925. Tudo o que ele pretendia fazer, está lá. Fim da democracia, regime de partido único, controle absoluto do Estado sobre meios de comunicação, conquista territorial como “espaço vital”, destruição das “raças inferiores” e escravização das “raças intermediárias”.

Ledo engano. Em 24 de fevereiro de 1920, Adolf Hitler e Anton Drexler apresentavam um programa nacionalista, antissemita e anticapitalista. No mesmo dia, o Partido Alemão dos Trabalhadores, fundado em 1919, tornou-se Partido Nacional-Socialista Alemão dos Trabalhadores (NSDAP). Os 25 pontos do Programa do Partido Nazista2 são estes:

  1. Exigimos a unificação de todos os alemães na Grande Alemanha, com base no direito de autodeterminação dos povos.
  2. Exigimos igualdade de direitos para o povo alemão em relação às outras nações; revogação dos tratados de paz de Versalhes e St. Germain.
  3. Exigimos terra e território (colônias) para o sustento do nosso povo, e colonização para a nossa população excedente.
  4. Apenas membros da raça podem ser cidadãos do Estado. Apenas aqueles de sangue alemão, sem consideração de credo. Consequentemente, nenhum judeu pode ser membro da nação.
  5. Quem não tem a cidadania pode viver na Alemanha apenas como convidado, e deve estar sob a autoridade de uma legislação para estrangeiros.
  6. O direito votar e de determinar as questões relativas à legislação pertence apenas ao cidadão. Por isso exigimos que todos os cargos públicos devem ser preenchidos apenas por cidadãos. Nos opomos ao sistema parlamentar corrupto, de preencher cargos apenas de acordo com as inclinações partidárias, sem consideração de caráter ou capacidade.
  7. Exigimos que o Estado se encarregue primeiro em prover meios de subsistência para os cidadãos. Se é impossível sustentar a população total do Estado, os membros de nações estrangeiras (não-cidadãos) devem ser excluídos do Reich.
  8. Toda imigração de não-alemães deve ser impedida. Exigimos que todos os não-alemães que imigraram para a Alemanha desde 2 de agosto de 1914, sejam forçados a deixar imediatamente o Reich.
  9. Todos os cidadãos do Estado devem ter igualdade de direitos e obrigações.
  10. A primeira obrigação de cada cidadão deve ser o trabalho produtivo, mental ou físico. A atividade do indivíduo não deve colidir com os interesses do todo, mas deve ser realizada no contexto do todo, para o benefício de todos. Consequentemente, exigimos:
  11. A abolição de rendimentos não adquiridos por trabalho e emprego. Quebra da escravatura do rentismo.
  12. Em consideração ao sacrifício monstruoso de vidas e propriedade que cada guerra demanda do povo. O enriquecimento pessoal através de uma guerra deve ser considerado como um crime contra a nação. Por isso exigimos o confisco total de todos os lucros de guerra.
  13. Exigimos a nacionalização de todas os negócios constituídos como companhias (trustes).
  14. Exigimos uma divisão dos lucros de todas as indústrias.
  15. Exigimos uma expansão em larga escala dos benefícios aos idosos.
  16. Exigimos a criação de uma classe média saudável e a sua conservação, imediata disponibilização dos grandes armazéns para sua locação a baixo custo para as pequenas empresas, e a máxima consideração àquelas pequenas empresas com contratos com o Estado, condado ou município.
  17. Exigimos uma reforma agrária adequada às nossas necessidades, a promulgação de uma lei para a livre desapropriação de terras para fins de utilidade pública, a abolição dos impostos sobre a terra e a prevenção da todas as especulações de terra.
  18. Exigimos um esforço sem limite contra aqueles cuja atividade é prejudicial para o interesse geral. Criminosos comuns, usurários, agiotas e assim por diante devem ser punidos com a morte, sem consideração de credo ou raça.
  19. Exigimos a substituição de uma lei geral alemã no lugar do Direito Romano, que serve a uma ordem mundial materialista.
  20. O Estado deve ser responsável por uma reconstrução fundamental de todo o nosso programa nacional de educação, para permitir que todos alemães capazes e produtivos obtenham educação de qualidade e, posteriormente, introdução em posições de liderança. Os planos de ensino de todas as instituições de educação em conformidade com as experiências da vida prática. A compreensão abrangente do conceito de Estado deve ser buscada pela escola, logo no início das aquisições do conhecimento. Exigimos a educação custeada pelo Estado de crianças intelectualmente dotadas de pais pobres, sem consideração de posição ou profissão.
  21. O Estado deve providenciar um elevado padrão de saúde nacional pela proteção de mães e crianças, proibindo o trabalho infantil, encorajando a aptidão física, por meio do estabelecimento de uma obrigação legal de ginástica e desporto e pelo máximo apoio a todas as organizações preocupadas com a instrução física dos jovens.
  22. Exigimos a abolição das tropas mercenárias e a formação de um exército nacional.
  23. Exigimos oposição legal às mentiras conhecidas e da sua divulgação através da imprensa. A fim de capacitar uma imprensa alemã, exigimos que:
    a. Todos os escritores e funcionários dos jornais em língua alemã sejam membros da raça;
    b. Jornais não-alemães sejam sujeitos à obrigação de autorização expressa do Estado para ser publicado. Não poderão ser impressos em língua alemã;
    c. Não-alemães são proibidos por lei de qualquer interesse financeiro em publicações alemãs, ou qualquer influência sobre eles, e como punição para violações o fechamento da publicação, bem como a expulsão imediata do Reich para não-alemães. Publicações que são contra o bem geral, devem ser proibidas. Exigimos processo legal para produções artísticas e literárias que exercem uma influência destrutiva sobre a nossa vida nacional, bem como o encerramento de organizações que se opõem a estas exigências.
  24. Exigimos a liberdade de religião para todas as denominações religiosas dentro do Estado, desde que não ponham em perigo a sua existência ou se oponham aos sentidos morais da raça alemã. O Partido, como tal, defende o ponto de vista de um cristianismo positivo, sem se ligar a qualquer denominação. Combater o espírito judaico-materialista dentro e ao redor de nós, e estar convencido de que uma recuperação duradoura de nossa nação só pode ter sucesso dentro do enquadre: “O bem da comunidade antes do bem do indivíduo”.
  25. Para a execução de tudo isto, exigimos a formação de um poder central forte no Reich. Autoridade ilimitada do parlamento central sobre todo o Reich e suas organizações em geral. A formação de câmaras estaduais e profissionais para a execução das leis feitas pelo Reich dentro dos vários estados da confederação. Os líderes do Partido prometem, se necessário com o sacrifício de suas próprias vidas, apoio para a execução dos pontos enunciados, acima de qualquer outra consideração.

Para quem não se dispõe a ler “Mein Kampf” ou as leis de Nuremberg, pode ter certeza que todo o espírito do nazismo está contido nestes 25 pontos, desde literalmente o primeiro dia da existência do Partido Nazista. Ou seja, os nazistas já eram nazistas muito antes de acabarem com a democracia, boicotarem comércios e profissionais liberais judeus, enviarem jornalistas para períodos de “reeducação” em Dachau, e toda sorte de barbaridades que cometeram. Nenhuma ação monstruosa de seu regime genocida foi surpresa, não houve raio em céu azul. Estava tudo no papel, nas linhas e entrelinhas, desde seu início.

Eis o ponto em que quero chegar. O fenômeno bolsonarista dispensa corpo teórico ou organização partidária, mas suas ideias se fazem presentes muito antes de Bolsonaro ser eleito presidente. Não é necessário repetir os pontos do conhecido discurso de ódio que ele proferiu na Hebraica- RJ, racista e autoritário em sua essência, no hoje longínquo abril de 2017. Sequer enunciar as ideias econômicas de seu superministro da economia antes das eleições, onde o desmonte de mecanismos de proteção social, a entrega de patrimônio público e o solapamento da soberania nacional em setores essenciais já se vislumbravam. Passado mais da metade de seu mandato, a morte evitável e programada (grifo meu) da maioria das atuais 460.000 vítimas da pandemia (e contando), a economia anêmica já no seu primeiro ano de mandato e antes da pandemia, o aumento brutal da desigualdade -com miséria e fome em uma ponta e desempenho recorde da Bolsa de Valores na outra-, as ameaças à imprensa livre, o aparelhamento de órgãos estatais com asseclas no mínimo incompetentes, a obstrução da justiça por juízes e procuradores colocados lá para isso, tudo isso consegue encontrar paralelos na plataforma hitlerista, com as devidas diferenças de local, época e métodos. Um secretário da Cultura com discurso que imita Goebbels ao som de Wagner (só caiu porque divulgou) e um presidente negro da Fundação Palmares que trabalha contra qualquer política afirmativa e chama o movimento negro de “escória maldita”, fazem parte do panteão bizarro de um governo sinistro em sua essência e que flerta com o nazismo, aberta ou dissimuladamente.

Quanto a genocídio, o produto final do regime nazista, fico com a definição simples e direta do Dicionário Aurélio: é “o extermínio proposital que aniquila, mata uma comunidade, um grupo étnico ou religioso, uma cultura ou civilização”.

Podemos chamar Bolsonaro de genocida? Como comparar o que armênios, judeus e tutsis passaram com a situação brasileira?

Estamos acostumados a ver imagens de crianças indígenas saudáveis e sorridentes, brincando nas águas limpas de seus rios, no Xingu ou em Roraima.  Assim, a foto chocante do menino ianomâmi desnutrido que ilustra este artigo, obtida pelo missionário católico Carlo Zacquini, que atua entre os ianomâmis desde 1968 e divulgada pela Folha de São Paulo em 09/05/2021, é reveladora de uma política em execução. Bolsonaro, Salles e Mourão sabem que a destruição da floresta pelos madeireiros e o envenenamento dos rios por mercúrio pelos garimpeiros acarretam fome, malária, outras doenças e morte para os indígenas. A destruição de seu modo de vida e de sua cultura fazem parte do pacote. A desidratação e aparelhamento dos órgãos de proteção, fiscalização e repressão a crimes (Ibama, Funai e PF), reduzidos à quase inoperância, dão a chancela oficial para o processo em marcha. As balas dos jagunços se encarregam do resto.

Para finalizar, é importante ter a noção de processo e de escalada. Nenhum dos fatos supracitados desabou de súbito. Obedecem a políticas propostas e desenvolvidas bem antes de sua concretização. Dentro de semelhanças e diferenças que foram apontadas, é possível chamar o bolsonarismo de nazista e genocida? Faltam elementos para tanto? Ou são fenômenos incomparáveis? Deixo ao leitor a decisão.

Referências