Uma majestade estranha desprendia-se deste titânico monte de escombros (Victor Hugo, em Os miseráveis)

Na pandemia, andar de metrô virou atitude kamikaze. Os usuários acabam sendo transmissores involuntários da Peste. Lamentando muito, fui obrigado a usar táxi para me locomover. Vou sempre com um motorista conhecido, cuidadoso. Dá para viajar sem muita neura.

Numa das conversas com o taxista, comentamos sobre o contraste entre os dois lados da orla carioca. De um, a maravilha do horizonte azul, enfeitado com ilhas. Do outro, os paredões de concreto, despersonalizados, testemunhas da ocupação predatória dos espaços na cidade. Passando em frente a uma escola municipal na avenida Atlântica, ameaçada de demolição pelo prefeito, para orgasmo dos especuladores imobiliários, ensaiamos um dueto de palavrões em homenagem ao janota que ocupa o Piranhão.

Perguntei ao ilustre motorista se já tinha ouvido falar de Marc Ferrez. Ante a resposta negativa, deitei falação. Marc, brasileiro descendente de franceses, foi um dos mais importantes fotógrafos deste país. Registrou paisagens e gente nos séculos XIX e XX. As imagens da antiga avenida Central, atual Rio Branco, mostram uma beleza arquitetônica de tirar o fôlego. Pois bem, com poucas exceções, foi tudo demolido para dar lugar a prédios comerciais projetados por arquitetos que, pelo mau gosto, mereciam ganhar um bacalhau do Chacrinha.

Com o passar dos anos, os arredores da Rio Branco, ainda em parte habitados (a família de Carmen Miranda, emigrada de Portugal, morou um tempo na região do SAARA), foram sendo abandonados. Muitos prédios de interesse histórico ou de nobreza arquitetônica viraram pouco mais do que ruínas. Hoje, mais de 500 imóveis que contam parte da história carioca no centro estão abandonados ou não passam de cascas na iminência de desabar. Desamor criminoso pela memória urbanística, a consagrar a estética da desolação.

Os escombros do centro ameaçam sentar praça no campus da UFRJ. Há um processo de asfixia orçamentária da instituição, que vem desde 2011. Em 2021, a universidade pode parar. Os recursos disponíveis não serão suficientes para cobrir sequer as despesas obrigatórias básicas. O resultado já se vê nas imagens melancólicas de abandono.

Quando entrei para a Escola de Química, o campus da ilha do Fundão ainda cheirava a tinta. Restos de obra e andaimes eram visíveis. A gente sentia enorme orgulho de estar ali, instituição pública de excelência. Um de nossos professores, Horácio Macedo, foi eleito, anos depois, para a reitoria. Certamente o primeiro reitor comunista das universidades brasileiras. Horácio, professor brilhante, trabalhou para aproximar a comunidade acadêmica do entorno do Fundão. Para os que não moram no Rio, digo que, cercando os prédios da UFRJ, existia uma enorme favela horizontal, a Maré, com barracos assentados em palafitas. Quem frequentava o campus, convivia diariamente com aquele exemplo da obscena desigualdade social brasileira.

Fotos mostram o Bloco A, portão de entrada para os cursos de engenharia, inteiramente degradado. Como estarão os laboratórios que me viram como protótipo do professor Pardal, de jaleco, a sentir aromas inusitados e a me encantar com as cores mutantes que habitavam tubos de ensaio e erlenmeyers?

Navegava nestas divagações, quando ouvi um som familiar. Surpreso, percebi que um vizinho ouvia a rádio MEC. Será possível? Era a Valsa triste, de Sibelius. Não podia ter melhor trilha sonora para o que escrevo. Esta cidade, que esconde minhas pegadas, maltrata minhas memórias, abraça meus descaminhos, rima beleza com tristeza. Ou, como diria Monsueto, “mora na filosofia, pra quê rimar amor e dor?”.

Abraço. E coragem.