Há cerca de 20 anos publiquei um texto (na época, via e-mail!) entitulado “Mielina e Hemoglobina”. Era um texto analisando os fenômenos violentos da sociedade, onde eu criticava a tese de que pobreza e miséria geram violência, tese esta sustentada no contexto da criminalidade vulgar das quadrilhas, assaltantes e outros agentes “de campo”. Preliminarmente, eu estabelecia que este tipo de criminoso ou violento poderia até ser pobre, mas não miserável, pois crime é algo suficientemente elaborado e necessita de inteligência, estratégia, e na maioria dos casos urbanos, capacidade física e algum treino. Em outras palavras, para se ter um cérebro suficiente para estas façanhas e a capacidade física de executá-las seria necessário ter mielina e hemoglobina, coisa que só os minimamente nutridos desde a infância têm. Por fim, argumentava no sentido de demonstrar que se pobreza fosse determinante de comportamentos violentos, nosso país estaria de cabeça para baixo, se houvesse sobrado algo.

Mais adiante, eu explorava no texto o outro tipo de violência, aquela produzida nos gabinetes, onde covardes protegidos fisicamente pelas estruturas de concreto e mobiliário empunhando suas canetas produzem a farta gama de violência institucional sistêmica, esta sim, corrupta (não no sentido barato da gatunagem), fria, e também praticada por gente que além de mielina e hemoglobina teria todos os pressupostos culturais e sociais para não fazê-lo.

O momento atual brasileiro reforça a minha já antiga tese. Nunca uma caneta Bic (com todo o respeito pela marca, que não responde pelos atos que criminosos cometem com sua tinta) matou tanto em nossa história, pelo menos. E nunca um criminoso tão violento e brutal foi amplamente apoiado por um congresso que parece insensível à tragédia brasileira, ressalvando-se uma minoria que conseguiu, diante da não menos criminosa omissão de Rodrigo Pacheco, presidente do senado, um mandado do STF para que se instalasse a CPI da COVID-19.

Esta forma de violência, a institucional, é limpinha e cheirosa, além de bem temperada ao gosto de setores da sociedade. É uma violência gourmet, sorvida pantagruelicamente pelos Pazuellos, Bolsonaros, Salles, e outros agentes de destruição social.

Eu me preocupo mais com a “caneta Bic” do que com os fuzis. Pois é ela que mata muito mais que as armas.