O domingo amanhecia quando comecei a caminhar na beira do mar, sem saber o que estava por acontecer. A imensidão do mar acalma, há um cheiro de liberdade, que aumenta a coragem num movimento constante. Por mais belos os rios, as planícies e as montanhas, nada se iguala as emoções do mar quando se trata de liberdade. Li relatos de presos, falei com prisioneiros que me falaram das saudades do mar. Não me canso de caminhar na praia, de ver as ondas, a imensa bondade do ir e vir da maré. O mar está sempre em movimento, e foi olhando esse ir e vir que pensei sobre as pessoas. Tem as que são meio paradas, com pouco entusiasmo, se arriscam pouco. Há os que se movimentam para trás, os saudosistas, os que adoram os tempos autoritários, com pais idealizados que autorizam um outro a tudo. Também há os que vão em busca de sonhos desejantes, vivem entre o ânimo e o desânimo, mas tendem a ter o dom do humor. Brinco na caminhada sem máscara acompanhado pelo música das ondas e o som de pássaros felizes.
Divaguei junto ao mar, observei o sol despontando no horizonte, e começo a voltar e, de repente, uma miragem, onde há muita gente de máscara. São grupos de dez que formam umas vinte fileiras distantes uma da outra, logo nem abrindo os braços era possível se tocar. Os amigos do face estão na praia e o encontro é uma festa, após tanta solidão. Todos juntos na invisibilidade, pois ninguém via, mas estávamos juntos, e logo começaram os cantos. Parecíamos fiéis que vão às praias no dia dois de fevereiro para saudar Iemanjá, rainha do mar. Grande Dorival Caymi o poeta do mar recordou uma outra vida, outro Brasil, gente humana, solidária, espirituosa. Alguém propôs que num domingo pela manhã em Porto Alegre fôssemos todos ao Jardim Botânico, e assim nos despedimos na leveza da imaginação.
Domingo reencontrei gente no mar e no sábado seguinte reencontrei o teatro. Assisti pela primeira vez no zoom um espetáculo cujo palco era o rosto do ator Pedro Osório do Rio de Janeiro. Ele apresentou o espetáculo « A Peste » baseado no livro de Albert Camus durante uns quarenta minutos, pouco mais, e após teve comentários. Foram duas horas grudado na tela do computador, não imaginava que seria possível um teatro assim. Também não imaginei no ano passado que uma análise pudesse se desenvolver via celular. Diante dos obstáculos está sendo preciso criar novos caminhos, que requerem conviver com o invisível, uma outra realidade.
A novela « Peste » é uma metáfora do nazismo que invadiu a Europa, onde os ratos são os nazistas que tanta crueldade fizeram ao mundo. Impressionante como ocorre a negação, o desprezo pela medicina e a ciência pelas lideranças políticas. A « Peste » foi publicada dois anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, um êxito de público impressionante. Camus alerta ao final do livro que as epidemias terminam mas voltam, e aí se pode associar ao tempo atual em nosso país na pandemia está dominado pela mentalidade miliciana. Depois do espetáculo falaram Julia Alexim do Rio de Janeiro, Ângela Lângaro Becker e Edson Luiz André de Sousa da APPOA que promoveram um sábado de arte e alegria.
Reencontros com o teatro, o mar, gente querida e as palavras de Albert Camus : « A imaginação oferece às pessoas consolação pelo que não podem ser e humor pelo que efetivamente são ». Revelou em sua vida, na sua obra e nas entrevistas sua crença na humanidade, mesmo diante do absurdo. Porque hoje é sexta e amanhã é sábado um viva ao humor, às artes que aceleram a imaginação, e ainda erotizam o amanhã.