Tomei a segunda dose da Coronavac. Idealizei que meus tímpanos vibrariam, eufóricos, com Händel ou Pixinguinha, soltando fogos e celebrando o um a zero. A coisa foi mais murcha. Percebi que a liberdade conquistada era pela metade. Como se, nos prisioneiros de antigamente, fosse retirada apenas uma das esferas de ferro acorrentadas nos dois pés. O peso do isolamento, dos silêncios indesejáveis, das ausências sangradas, não se remove estalando os dedos.

Voltando para casa, bateu uma nostalgia do tempo em que se jogavam garrafas ao mar, passando mensagens sem destinatário conhecido. Sem urgência, como uma respiração pausada. O que eu colocaria numa dessas garrafas para descrever meu tempo pandêmico?

Quem se lembra de uma antiga comédia de Blake Edwards, Um convidado bem trapalhão, protagonizada pelo Peter Sellers? Tivemos, não convidados bufões, mas intrusos de todos os tipos e feitios quando nos trancamos em casa. A Morte, disfarçada ou explícita, nos lembrou que não é apenas um acidente. A boçalidade dos negacionistas é sua aliada. As piras funerárias a céu aberto na Índia, sua exuberante representação. O contraste com a Vida sequestrada me fez lembrar de um quadrinho da Mafalda. Como quem não quer nada, a menininha filosofou, com evidente ironia: se viver é durar, prefiro um Lp dos Beatles a um dos Boston Pops. Não, viver não é durar, embora muitas vezes o imobilismo do isolamento tenha provocado essa confusão. Uma das tarefas de quem tira o mofo acumulado em mais de um ano e pisa, assustado, na calçada, é reconstruir objetivos, caminhos e relações, para, aí sim, inventar sentidos para a vida.

Não perdi gente próxima para o vírus, mas meu prazer de acompanhar o crescimento dos netos foi amputado. Um ano é demasiado no processo de descobertas e espantos de uma criança. Já nem falo da falta que faz o cafuné ao vivo. Certa vez, minha neta me acompanhou, devidamente mascarada, a uma consulta médica. Na volta, sentada na cadeirinha dentro do carro, foi se despedir. Quando acarinhei sua linda cabeleira, segurou com força o meu braço e não queria soltá-lo. Noutro dia, meu neto menor fez enorme banzé, exigindo que a mãe o trouxesse para minha casa. Já tinha passado da hora de suspirar pelos avós isolados. Perdas e danos.

Crianças falam mesmo quando estão em silêncio. O que diriam as 5,1 milhões de crianças e adolescentes que estão sem aulas (quase 14% do total em idade escolar), se pudessem exprimir seus sentimentos? Muitas delas acabarão abandonando os estudos e o país pode retroceder 20 anos no acesso à educação. A falta de interação com os amigos está acumulando um prejuízo emocional que continuará por muitos anos. Muitos gritos de socorro, silenciosos ou não, serão jogados ao mar em garrafas aflitas.

Há desvarios no festim da Morte. Algumas companhias aéreas estão vendendo passagens de voos para … lugar nenhum. Existem duas opções para o delírio. Na primeira, o avião levanta voo de verdade, fica no ar por algumas horas e volta para o ponto de onde partiu. Na segunda, apenas uma simulação. O distinto passageiro entra numa carcaça de avião, depois de escolher um “destino”. Lá dentro, um telão reproduz imagens do “destino” em alta definição. Aeromoças de sorriso plastificado oferecem comida “típica”. Deve existir uma definição técnica para o gosto pela ilusão.

A mensagem já vai grande, periga a garrafa afundar. Termino, mas antes um breve comentário sobre texto do jornalista João Batista Natali. Ele ficou 21 dias internado por causa da Covid, “sobrevivendo como um enorme repolho inerte e intubado na UTI do hospital”. Ao sair da sedação, um dos primeiros sons que ouviu foi a Paixão segundo São Mateus, de Bach. Chorou compulsivamente. Estava, ainda grogue, redescobrindo a beleza de simplesmente existir. Conheço a composição que ele ouviu. No meio dela, há uma ária, Erbarme dich, mein Gott, cuja beleza faz o mais siderúrgico pessimista acreditar na humanidade. Mesmo que por alguns minutos. Vale a pena viver para saborear os pequenos gestos desprendidos, as grandes músicas, os poemas que acendem exclamações, os encontros que nos fazem parte de projetos e paixões, as relações que atenuam a burocracia do cotidiano, as memórias que nos edificaram. Como disse o Valter Hugo Mãe, “com seu inesperado e tanto susto, a vida é a oportunidade da maravilha”. Vamos correr atrás disso.

Abraço. E coragem.