A fome contemporânea é a mais violenta da história, pois não é causada pela escassez mas pela concentração de bens (Martín Caparrós, jornalista argentino)

Ainda faltavam dois anos para Gagarin se tornar o primeiro homem a viajar pelo espaço. Sergio Murilo, mastodôntico precursor do rock brasileiro, fase estúpido cupido, sonhou com amores interplanetários em 1959 e gravou Marcianita. Com que tipo de broto marciano sonhava? Um que “não se pinte, nem fume, nem saiba sequer o que é rock and roll”. Tremendo careta, o rapaz. Nada a ver com o espírito libertário dos roqueiros, os requebros de Elvis, the pelvis, as flutuações de Chuck Berry. Marte? Só com a tia solteira tomando conta dos namorados no portão de casa. Socorro, meu santo Hendrix!

Vivíamos numa época sem controle remoto na televisão e nos brinquedos. Rádios transistores eram novidade recente. Aparelhos sem fio? Matéria de ficção científica. Celulares? Chamadas de vídeo? Só mesmo na imaginação fértil dos Jetsons.

Passados sessenta anos, um voo de trinta segundos acaba de promover uma pequena revolução. Na superfície árida de Marte, planeta cuja atmosfera tem menos de um centésimo da densidade da terrestre, o mini-helicóptero Ingenuity pairou sobre rochas e matéria mineral e, com a breca!, abriu um baú de possibilidades científicas. Meu assombro é que a geringonça de 85 milhões de dólares foi acionada a mais de 60 milhões de quilômetros de distância. No curtíssimo intervalo de seis décadas saímos da troca manual de canal, do Bat Masterson para o Repórter Esso, para uma comunicação remota que parece não ter limites.

Trinta segundos. Mas que proeza mixuruca, hein? Bem, eu não diria isso. Lembremos o voo do 14-bis, pilotado por Santos Dumont, em outubro de 1906. Foi a primeira vez que um mecanismo mais pesado do que o ar conseguiu voar com autonomia. Sabem quanto durou? Sete segundos. Percorreu sessenta metros e estava a dois metros de altura. Pouco mais de um século depois, sabemos o que significa a indústria aeronáutica.

Antes de tomar um porre celebrando mais esta prova de engenho e arte do Homem, convém dar uma olhada na dona Marli Oliveira Gama. Moradora da região de Parelheiros, extremo sul de São Paulo, ela é uma das muitas pessoas que, durante a pandemia de Covid-19, perderam a totalidade de sua renda. Passaram a garimpar restos de comida no lixo e a depender da caridade alheia. “Às vezes jogam fora feijão cru, no saquinho, eu pego. Ponho de molho, a gente cozinha”. Sem poder pagar a conta do gás, improvisa um fogão a lenha. “A gente vai vivendo como Deus permite”. A situação é tão dramática que mesmo restos de metal que se encontravam em lixões hoje escasseiam.

Dona Marli está longe de estar sozinha na miséria e na incerteza. A fome atingiu 19 milhões de brasileiros na pandemia em 2020. Cerca de 117 milhões de pessoas conviveram com algum grau de insegurança alimentar no país nos últimos meses do ano. Se ampliar o foco, há 700 milhões de pessoas passando fome crônica no mundo. Caso nada mude, chegarão a 840 milhões, equivalente a quatro Brasis, em 2030. Em contraste, 3% da população adulta são obesos.

Em meio à crise mundial generalizada, a lista de bilionários engorda. Os 2.755 ricaços planetários concentram uma fortuna equivalente a quase 10 PIB brasileiros. Enquanto dona Marli tentava sobreviver catando comida no lixo, o número de bilionários brasileiros crescia quase 50% em 2020.

Luxo e lixo. Ciência de ponta e humanos cozinhando com restos de madeira, à moda de remotos ancestrais. Ingenuity e doses monumentais de adaptação conformada. Um equilíbrio esquizofrênico. Se esta maçaroca não gerar revoluções, nosso projeto como espécie vai para o espaço. E não estou falando de voos espetaculares em Marte.

Abraço. E coragem.