Pesquisas revelam que cachorros e gatos estão mais valorizados na pandemia. A vida caseira e a falta da convivência humana fizeram as pessoas buscarem a companhia nos animais. Um amigo tinha duas gatas e agora comprou um cachorro, e conta sobre as aproximações e tensões entre os três, que, aos poucos, convivem melhor, e ele se diverte. Nesse clima de pandemia e animais, tenho lembrado do Benjão, o cachorro que veio de outro planeta.
Benjão era de uma coragem invejável, amava a casa, a família, mas gostava das odisseias da rua. Tinha astúcia para escapar, sua alegria estava nas aventuras da rua. Oswald de Andrade escreveu que a alegria é a prova dos nove, e nessa prova Benjão passou fácil.
Benjão herdou a sabedoria de Argos, o cachorro de Ulisses, que, após vinte anos separado de seu dono, já muito velho, o reconhece e só então pôde morrer. Ulisses percebeu seu rosto umedecido por uma grossa lágrima porque esse reconhecimento, no seu disfarce de velho empobrecido, só seu fiel cão poderia perceber. Argos em grego é o que tem luz, e esse encontro emocionante está no canto XVII da “Odisseia”. A quem deseja ler indico a tradução do amigo Donaldo Schüler.
Benjão integra a família dos caninos, e o cão foi o primeiro animal que o homem roubou da vida selvagem e domesticou nas cavernas. A humanidade na relação do homem com o animal que tem um amor irrestrito, amplo, de uma só valência, quando nós humanos somos ambivalentes, amamos e odiamos. Emmanuel Levinas descreveu como um cachorro no campo de concentração em que esteve foi uma expressão inesquecível de humanidade.
Benjão, há vinte anos, partiu contra sua vontade, e hoje o trago em forma de palavras, pois foi o irmão menor que sonhei na infância. Todo cachorro especial é um ser de outro planeta, como disse um amigo sobre seu cão policial Ernst. Benjão um dia desapareceu por dois dias e duas noites e foi uma tristeza geral, mas na terceira noite ele voltou com um pedaço de corda no pescoço na qual tinha sido preso. Foi uma noite de muita festa. Finalmente, fui obrigado a me separar do Benjão, pois nos mudamos de casa para um apartamento e ele não poderia ficar preso. Hoje não teria feito a mudança, porque sempre senti falta do cachorro mais alegre que conheci. Quando me via, ele vinha e deitava sua cabeça no chão e oferecia sua face para que eu passasse levemente meu pé no seu rosto. Era assim que ele recebia seu carinho todos os dias, uma cena que deveria ter sido fotografada. Benjão foi para uma outra casa e lá viveu anos, mas conseguiu cavar um buraco por baixo da cerca e saía todos os dias para passear. Uma vez saiu e não voltou, me contaram, pois alguém vendo ele na rua o levou para sua casa. Como já se passaram vinte anos, ele saiu daqui direto ao paraíso.
Benjão é inesquecível, para todos que o conheceram, tinha tudo que precisamos na vida: amor, coragem e liberdade. Marcou a todos que conviveram com ele. Recordo seu rosto e fico mais calmo, mato as saudades de seu entusiasmo por viver. Enthousiasmos, que em grego é “ser inspirado por um Deus”, e Benjão foi um entusiasmado pela vida.
Benjão sorriso, nunca o vi triste, a não ser quando foi embora em cima de um pequeno caminhão. Não estava triste, mas seu rosto, lembro bem, se inquietou, como perguntando o que tinha feito para ter que ir embora. Benjão está vivo nos corações dos que o conheceram.
Obrigado, amigão.