Comentei recentemente uma grave distorção das chamadas questões identitárias. Uma editora holandesa se interessou em publicar no país uma coletânea da jovem poetisa negra norte-americana Amanda Gorman. Marieke Rijneveld, respeitada romancista local, vencedora do Booker Prize, foi convidada para fazer a tradução. Janice Deul, ativista antirracista, bombardeou a escolha e, usando uma alegação típica de setores equivocados do antirracismo, sugeriu trocar Marieke por uma tradutora negra. Como se a cor da pele fosse atestado de excelência literária.

A melhor crítica à atitude de Janice veio do escritor angolano João Melo: “Uma patetice, que reforça o racismo antinegro. A polêmica é uma caricatura grotesca do antirracismo, enfraquecendo a luta contra todas e quaisquer formas de discriminação com base na cor da pele”. O caso me lembrou a obscena censura que a cantora Fabiana Cozza sofreu, em 2018, ao ser convidada para interpretar Ivone Lara numa peça de teatro. Foi “acusada”, por personalidades do movimento negro que perderam a razão, de ser “muito clara” para o papel. Curiosamente, Fabiana, grande amiga de dona Ivone, tinha condições de dar cores vivas e íntimas à personagem. Sem passar pelo teste da melanina.

A lógica estapafúrdia da preferência melanínica contamina a luta contra a discriminação racial. Como buscar alianças, se vigora o veto pela cor da pele? Será que não se aprendeu nada com a História? A emancipação dos oprimidos será, necessariamente, obra dos próprios oprimidos. É verdade. Isso, no entanto, não significa ignorar políticas de alianças. Brancos norte-americanos, com bela participação judaica, foram extremamente importantes na conquista de direitos civis para os negros nos Estados Unidos. Joe Slovo, judeu lituano, militante comunista, foi assessor de Nelson Mandela.

Na área artística, há exemplos inspiradores de superação das barreiras de cor e valorização da cultura. Paul Robeson, extraordinário cantor baixo-barítono, negro, tinha no repertório o Hino dos Partisans, cantado em ídish perfeito. Joshua Nelson, negro, acompanha o grupo Klezmatics numa inesquecível interpretação de Shnirele Perele, também em ídish. Em New York, o Pessach judaico, que lembra a libertação de escravos hebreus do Egito, é celebrado em várias comunidades por negros e judeus, integrados pelo desejo comum de liberdade. Não faz muito, o musicólogo Henry Sapoznik desenterrou uma história muito interessante, que resumo em seguida.

No período entre as duas guerras mundiais do século passado, o bairro do Harlem, em New York, começou a receber um fluxo crescente de negros, fugidos das perseguições do sul dos Estados Unidos. Originalmente judaico, o bairro passou por uma experiência de integração inédita na cidade. Este contato resultou na criação de várias sinagogas por negros. Surgiram cantores litúrgicos negros (hazanim), que cantavam não apenas as orações em hebraico mas, com o tempo, ampliaram o repertório para canções em ídish. Sem perder suas raízes culturais, incorporaram novas modalidades de vida social. Sapoznik recuperou um disco de 1923, com o cantor litúrgico negro Thomas LaRue. Conhecido como der shvartser hazan (o cantor litúrgico negro), atuava no então vibrante teatro ídish e seu sotaque era espantosamente fiel às origens europeias do idioma.

Ainda na área artística, é quase inevitável lembrar de Bruno Ganz. O grande ator alemão interpretou Hitler no filme A queda. Para entrar no personagem, estudou o sotaque da região austríaca onde nasceu Adolf. O resultado foi impressionante, sofisticado, aterrador, e entrou para a história do cinema. Ganz jamais foi nazista. Usando a mesma lógica que baniu Fabiana e Marieke, só um nazista raiz poderia interpretar o chefão nacional-socialista.

A luta contra todas as discriminações, que é também a minha, não merece alguns espiroquetas que a descaracterizam e jogam no gueto.

Abraço. E coragem.