Era batata. Todo dia, pouco depois das cinco e meia da tarde, a figura miúda, que parecia arrastar fados ardidos, chegava para acionar uma chave. O português de passos lentos iluminava as partes comuns da vila de casas e voltava para sua rotina triste.
As lâmpadas acesas vibravam o toque de recolher. Hora de parar a linha de passe (alívio para o goleiro, que já tinha tomado um saco de gols), guardar as bolas de gude e interromper a caçada aos grilos. Éramos exímios caçadores de grilos. O segredo era identificar o cri-cri dos bichinhos no mato, aproximar-se devagar e, zás!, agarrá-los. Na maioria das vezes, isso resultava na asfixia das pequenas vidas, mas, privilégio da infância, nunca assumimos o crime. De resto, a população de grilos era enorme e a devastação minúscula. Queríamos apenas sentir a vibração de patas e asas nas palmas das mãos e provar que, pelos poderes de Greyskull!, éramos poderosos.
Os adultos, classe média baixa, começavam a chegar do trabalho. O Menino não compreendia as cabeças baixas, os olhos melancólicos, os ombros caídos. Todos moídos. Era assim com o vendedor de margarina, o pequeno comerciante, o dentista, o câmera da TV Tupi. Todos se conheciam pelos nomes, trocavam amarguras e sonhos sentados debaixo de céus estrelados. Minha vila tinha essas intimidades, que os paredões de concreto da cidade embrutecida aniquilaram.
Para os Meninos, as noites nem sempre eram pacíficas. No meu caso, tomar a tabuada em véspera de prova, engolindo uma indesejadíssima sopa de abóbora, trauma quase insuperável, cheirava a filme de Roger Corman estrelado por Bóris Karloff. Em preto e branco, carregado no noir.
Ultrapassado o obstáculo aboboral, restava a esperança de dormir após as 21 horas. Concessão rara. Nesse horário se exibiam episódios de bangue-bangues. Cresci nutrido por Wyatt Earp, Bat Masterson e Paladino do Oeste. Como pós-graduação, histórias de suspense apresentadas por Hitchcock, ficção científica no Além da imaginação (sem efeitos especiais, apenas criatividade), rajadas de metralhadoras nos Intocáveis. Vocês não imaginam a excitação de assistir aquelas imagens para quem, até então, só tivera a companhia das ondas sonoras do rádio. Para aumentar a tensão, a corrente elétrica oscilava, a imagem sambava na horizontal e na vertical, enfrentando os botões de controle com a galhardia colonial do Jim das Selvas.
A vila não era apenas uma fileira de casas modestas, cercada por matagais, pedreira e uma solitária mangueira. Nela existia uma rede delicada de relações, que incluía moradores, leiteiros, padeiros, garrafeiros e ambulantes eventuais. A solidariedade entre aqueles iguais foi vital no momento trágico em que o coração do Grande resolveu implodir numa quarta-feira de cinzas. Os gritos de socorro do Menino atraíram de imediato a vizinhança e alguém tratou de chamar a assistência (ambulância das antigas). Em vão. Naquela hora de estranho vazio, de anestesia, de dor indescritível, uma vizinha fez as vezes de consoladora. Intimidade. A beleza do humano.
A especulação imobiliária, ganância criminosa que desfigurou o Rio, não chegou a demolir aquelas casas. Elas ainda existem. O matagal foi substituído por um paredão do Sesc Tijuca, a área das peladas é estacionamento de moradores, a entrada foi fechada por um portão metálico. O que não derreteu foi a memória de tempos mais amenos, mais pacíficos, que saíram da ribalta junto com as cadeiras de vime das conversas noturnas.
Antes de parir o Stanislaw Ponte Preta, Sérgio Porto escreveu crônicas primorosas, especialmente sobre a Copacabana de sua infância. Ainda vou dividir com vocês pelo menos uma delas. Bem, ele descreve a tristeza de ver sua casa demolida. Conservando o direito de ficar triste, conclui assim um de seus textos: “A gente sempre se sente um pouco mais alegre da alegria que teve”. Não vejo forma melhor de encerrar estas lembranças.