Ao Artur Xexeo, pela inspiração involuntária.
E então me junto à confraria dos cronistas. O que fazer na frente da tela branca, da linha vertical que pisca? Tantos e nenhum assunto a enfrentar… Longe da vida que pulsa, ou pulsava, acabo me voltando para dentro. Como era mesmo antes deste apocalipse viral? Do que me despedi e o que tenho pela frente?
Há um ano eu estava em Montevidéu, cidade que adoro. A cada vez que circulo por lá, (re)descubro inusitâncias e belezas. Naquele início de 2020, conheci a Fundação Benedetti, o Museu da Memória, uma antiga taberna basca, anexa a um clube de descendentes de emigrantes. Ganhei, sobretudo, o que, em breve, seria proibido.
Procurávamos a casa do avô de minha companheira, quando pedimos informações a uma passante. Percebeu, de imediato, que não éramos de lá. Tava na cara e no sotaque. Um tanto desconfiada, já torcendo o nariz e talvez se preparando para nos mandar pentear macacos, perguntou: Argentinos? Quando respondemos que não, abriu um imenso sorriso e pulou em nosso pescoço, num abraço integral. Passou com prazer a informação, deu adeus e foi-se embora. Mal sabia eu que aquele gesto de carinho seria dos últimos antes de que contatos físicos virassem ameaça letal na pandemia que, dobrando a esquina, arrombaria a porta. Em tempo: nada contra os hermanos argentinos, tudo pelos abraços.
De volta ao Rio, sem perceber a tempestade que se aproximava, fiz as últimas caminhadas na orla de Copacabana antes de cair no isolamento total. Mesmo com as primeiras notícias de infectados, pensei, ou melhor, mais desejei do que pensei, que aquilo seria como chuva de verão. Dor de cabeça de fôlego curto. Ledo e ivo engano. O sol no calçadão talvez pudesse ser comparado, com as devidas e enormes vênias, ao pôr do sol em Varsóvia no dia 31 de agosto de 1939, véspera da invasão nazista à Polônia. Quem podia supor que o êxtase momentâneo seria substituído pelas bombas que arrasariam o país?
O início da encrenca mais parecia um trecho do filme O expresso da meia-noite. O diretor de uma penitenciária turca tenta enlouquecer o prisioneiro norte-americano, fazendo-o andar em círculos junto com outros detentos, sempre no mesmo sentido. Para quebrar o ciclo, o preso começa a andar em sentido contrário ao dos demais. Quando comecei a subir e descer escadas do meu prédio, a andar dentro do meu apartamento, exercícios desintoxicantes, senti o peso da rotina a que não estou habituado. Depois de um tempo, essa carga desembarca no desprazer e na tristeza. É uma guerra diária contra a melancolia e o roteiro repetitivo. Sabem a sina do Bill Murray no Feitiço do tempo? Pois é. Sei que vai passar, mas enquanto isso a batalha é dura.
Há muitas dores no picadeiro, talvez a maior de todas seja a sensação de que estão nos roubando o tempo. Enquanto a Morte sobrevoa, frequentando névoas e brechas, e os demônios assombram as madrugadas, o tempo escapa entre os dedos. Uma perda irrecuperável. Fragmentos de pessoas queridas, igualmente isoladas, igualmente ansiosas, estão perdidos para sempre. O inconsciente é caprichoso. De repente, vi-me relendo fundamentos da química, etapa da minha vida que julgava enterrada. Acho que tentei viajar para um tempo menos sufocante. Em vão, este bonde já passou. A realidade se impõe, implacável.
Para piorar, o sociedade brasileira teima em confirmar, diariamente, que é um projeto que naufraga. Com as exceções de praxe, tem prevalecido o interesse pessoal sobre o coletivo, facilitando a propagação da peste e minando esperanças de uma mobilização nacional contra ela. Quem consegue construir uma comunidade nesta base? O ânimo negacionista-totalitário do governo só agrava o quadro. Raduan Nassar, o enigmático escritor que virou agricultor, acha que “talvez a maior lição da pandemia seja reafirmar que precisamos viver, e conviver, de modo comunitário e solidário”. Compreendo isso como um desejo e uma possibilidade, não confirmados pelas aglomerações, pelo jeitinho dos fura-filas na vacinação, pelas récuas de desmascarados nas ruas, pelos imbecis antivacinas.
Sigo. Com saudades de mim mesmo, da vida ausente, dos que me dão forma. Por enquanto, sem perder o rebolado.