Na madrugada do dia 26 de janeiro, pouco depois da meia-noite, tive um pesadelo. Logo tratei de memorizar a cena central para não esquecer: “A casa está repleta de gente desconhecida, muita gente, fiquei perplexo, todos sem máscara, olhei a tudo assustado, uns caminhando, outros sentados conversando como se fosse um restaurante na rua. Aliás, tudo ocorreu no pátio da casa”. Pela manhã escrevi sobre a vivência de ser invadido, como se eu não fosse mais o proprietário da casa. O primeiro que me veio à mente sobre a invasão foi a leitura no dia anterior do começo do livro essencial “Massa e Poder” de Elias Canetti. “Não existe nada que o homem mais tema do que ser tocado pelo desconhecido.” Eis uma frase na qual o estranho, o diferente, o desconhecido assusta, daí a palavra xenofobia, uma fobia ao estranho. Todo sonho tem um resto diurno que é algo ocorrido, lido, visto, que se conecta com o desejo inconsciente que se realiza no sonho. O sonho se passa no pátio, esse espaço descoberto que me leva ao quintal de uma casa da infância, o melhor lugar da casa para brincar. Até hoje sou fascinado por pátio, o ar livre, o melhor lugar para se viver é uma casa com pátios.
Muita gente no pátio dá também a sensação de estar perdido num labirinto. Esse pesadelo da invasão de gente sem máscara associo à fobia diante pessoas sem máscara na rua. Há meses tenho uma ideia recorrente: o Brasil foi invadido por forças que vivem sua festa do ódio. Festa em que o líder anda de moto, a cavalo, faz que nada, quando ocorre a pior invasão da história, pior que a dos franceses, holandeses e portugueses. Pátio é a liberdade e perdemos a liberdade, não toda, mas quase, e há um sentimento quase de impotência diante dos sem máscaras.
Os ataques desde o inconsciente são invasões, mas não são a matéria de Canetti, mas em psicanálise, nos sonhos, ou nas melancolias, os ataques expressam diferentes necessidades de castigo. Logo me perguntei sobre o pesadelo da invasão da casa, por que me castiguei. Minha origem é o velho Bom Fim de Porto Alegre, onde se bebiam as tristes histórias que os imigrantes judeus contavam.
A invasão do pesadelo associo a uma recordação infantil, ocorrida aos três, quatro anos. Meus pais saíram e disseram que iam ao cinema e fiquei só com a empregada, que me contou essa história: Um ladrão, numa madrugada, entrou, silenciosamente, numa casa e foi para baixo da cama do casal e com uma faca assassinou os dois. Meus olhos se arregalaram e seguiram assim até os onze anos, à noite, costumava olhar para baixo da cama. Depois perdi o costume e passei a achar graça, mas a invasão da casa se associou ao crime de um casal. Meus pais mortos e eu o assassino raivoso porque eles foram ao cinema e dormiam juntos. Ah, e eu e minha irmã dormíamos na mesma cama e no mesmo quarto, uma casa pequena. Agressividade e erotismo no pesadelo e se sabe que o parricídio ocorre assim como o filicídio na fantasia. Em Édipo Rei de Sófocles, Laio tentou matar seu filho Édipo, que depois o matou numa encruzilhada sem saber.
A pandemia é uma grande invasão viral que pode matar, e os sem máscara, representam ameaças à vida, a começar pelo Presidente. Estamos invadidos pelo vírus e pela indiferença de muitos poderes que são insensíveis ao sofrimento humano. Uns dizem que são sociopatas, outros os definem como canalhas. O pesadelo pessoal passou, satisfez minha necessidade de castigo.
Já o pesadelo nacional é um castigo aos mais pobres, índios e negros por um governo que desprezou o vírus e a vacina. O Presidente tem avalistas nos armados, no Congresso, no mercado, nos seduzidos pelo autoritarismo, e no silêncio das instituições médicas. Logo, só a esperança e a imaginação de muitos, servem de ânimo e potência contras as dores e desilusões da experiência.