Nada é mais terrível do que uma ignorância ativa (Goethe)

Era para ser apenas mais uma cerimônia de formatura. Os formandos do Instituto Rio Branco escolheram João Cabral de Melo Neto como patrono da turma de 2020. Foi o suficiente para o chanceler Ernesto Araújo azedar o clima, desqualificando o grande poeta pernambucano, que foi diplomata de carreira. No discurso protocolar, acusou-o de ter ido para “o lado errado do marxismo e da esquerda”. Não teve sequer a dignidade de lembrar a perseguição sórdida que João sofreu no Itamaraty, nos anos 1950, por ser antifascista numa época de caça às bruxas. Como esta é uma história pouco conhecida, resolvi contá-la. As informações estão na bela biografia do poeta escrita por João Castello.

Em 1952, João Cabral era segundo-secretário da embaixada brasileira em Londres. Enviou uma carta ao também diplomata Paulo Cotrim Rodrigues Pereira, lotado em Hamburgo, na Alemanha, encomendando um artigo para um periódico ligado ao Partido Trabalhista inglês. A carta foi interceptada pelo diplomata Mário Mussolini Calabria, que a encaminhou ao estado-maior do Exército. Anexou um bilhete, denunciando infiltração comunista no Itamaraty. A coisa passaria em branco, se não fosse Carlos Lacerda, que também recebeu uma cópia da carta. Fazendo jus ao apelido de Corvo e apelando para uma proverbial desonestidade, Lacerda usou o espaço do jornal Tribuna da Imprensa para criar um escândalo.

Com tanto ruído, João é chamado de volta ao Brasil e, sem apelação, colocado em disponibilidade, sem vencimentos. A acusação é familiar a todos os que sofremos a ditadura civil-militar inaugurada em 1964: ligação com o comunismo. Foram igualmente punidos mais quatro diplomatas, entre eles Antônio Houaiss. Getúlio Vargas, que era o presidente, posterga a decisão sobre o caso com firulas legais. Durante a pendência, João Cabral é convocado para depor na polícia, no famigerado prédio da rua da Relação. Mesmo com a solidariedade de amigos, o estado de espírito do poeta fica abalado.

Um dos que intercederam por João foi dom Hélder Câmara. Mais de uma vez foi ao Itamaraty falar com o ministro Raul Fernandes, que o recebia invariavelmente com ironia: “Já sei, veio de novo interceder pelo seu comunistazinho …” Com a entrada de José Carlos de Macedo Soares no lugar de Raul Fernandes, abre-se uma fresta para dom Hélder. Católico, Macedo Soares o convida para rezar a missa de posse. Na ocasião, o prelado chama sua atenção para a injustiça que cometem contra João Cabral. A partir daí, os procedimentos se aceleram e, em 1954, com a chancela do STF, o poeta é finalmente reintegrado e pode retomar a carreira interrompida.

A inteligência, o imperativo de pensar, o compromisso com a dúvida, a capacidade de se indignar, a interrogação poética, sempre assustaram os medíocres.  Assim foi durante a ditadura civil-militar, com a perseguição sistemática de artistas, intelectuais, divergentes de todas as cepas. Assim continua sendo na gestão do filotorturador, do mensageiro da morte, do vulgar exterminador de neurônios que nega a ciência, sabota a cultura e ameaça com um retrocesso civilizatório.

Do obscurantismo que atingiu João Cabral de Melo Neto nos anos 1950, sobrou uma certeza. Os nomes das mediocridades que acusaram o poeta e diplomata foram jogados na sarjeta da História. Lugar para onde seguirão, em breve, Ernesto Araújo e suas fantasias esquizoides. João, que completaria 101 anos anteontem, continua sendo lido, admirado, homenageado.

Abraço. E coragem.