Nelson Rodrigues entrou na minha vida de forma pra lá de sorrateira. Primeiro assistindo um teleteatro que passava na TVE.Não faço idéia de quantos anos eu tinha, é uma daquelas memórias tão incrustadas na minha alma, que arrisco dizer que foi antes da alfabetização. Minha estranheza e interesse veio do cenário ter dois andares. Ou seja, foi um fascínio mais pela forma do que pelo conteúdo, do qual não devo ter entendido absolutamente nada. Só mais tarde fui saber que a peça era Vestido de Noiva e a marcação era pra distinguir num plano o que era alucinação, no outro realidade. Não se espantem, meus pais não eram adeptos a filtros. Talvez por conta da idade permitida pela censura, aquele documento onipresente que antecedia toda a programação, se sentiam subversivos. Mais tarde, meu avô assinava uma revista (salvo engano a Manchete) e eu, maiorzinha, uns oito anos talvez, pegava a publicação com a desculpa de olhar as fotografias. Minha real intenção era ler a coluna do Nelson, nos moldes da Vida Como Ela é. Uma das suas histórias me impressionou mais do que todas. A narrativa se iniciava com duas meninas jogando amarelinha numa vila suburbana e passava por elas um vizinho homem feito, arrumado e perfumado. Uma das garotas sussurrou para outra: ”Ele deve ter amantes”. O tempo passou, a menina que ouviu o comentário cresceu e caiu nas garras do sedutor. O desfecho: A esposa do D. Juan de Aldeia Campista descobria o caso e jogava ácido na cara da moça, deixando-a desfigurada. O final me pegou de surpresa. Mas surpresa maior tiveram os adultos, quando na mesa de jantar perguntei do nada: ”O que é amante?” Foi assim que descobriram meu real interesse na revista e cortaram definitivamente meu acesso a ela.

Nelson foi e sempre será polêmico. Apesar de todo seu reacionarismo, temos que admitir que metia o dedo na ferida como ninguém. Saltam em seus textos tudo aquilo que sabemos do Brasil, mas temos pudores de falar. A hipocrisia, principalmente. Escancarada. Em O Óbvio Ululante, coletânea de crônicas selecionadas por Ruy Castro, no Jornal O Globo, em 1968, há uma em especial que diz muito sobre o Brasil de hoje. Ou, talvez, do Brasil de sempre. Essa crônica narra a visita de Sartre ao Brasil e uma reunião num apartamento chique a qual ele , Nelson, foi convidado. Sartre discorria sobre o marxismo, comendo jabuticabas que a dona da casa providenciara numa tigela, da forma mais blasé possível. Eis que ele olhou o público presente e perguntou:

 ““E os negros? Onde estão os negros?””.

“O gênio não vira, nas suas conferências, um mísero crioulo. Só louro,

só olho azul e, na melhor das hipóteses, moreno de praia. Eis Sartre posto

diante do óbvio. Repetia, depois de cuspir o caroço da jabuticaba: — ““Onde

estão os negros?””. Na janela um brasileiro cochichou para outro brasileiro:

— “Estão por aí assaltando algum chauffeur”.

“Onde estão os negros?” — eis a pergunta que os brasileiros deviam

se fazer uns aos outros, sem lhe achar a resposta. Não há como responder ao

francês. Em verdade, não sabemos onde estão os negros. E há qualquer coisa

de sinistro no descaro com que estamos sempre dispostos a proclamar: —

“Somos uma democracia racial”. Desde garoto, porém, eu sentia a solidão

negra.”

Sim, a solidão negra. Nos colégios tradicionais que estudei, os alunos negros eram contados nos dedos das mãos. Na universidade frequentada pela elite da Zona Sul do Rio de Janeiro, no fim dos anos oitenta, a mesma situação. Isso no plano social. Quanto ao educacional, ao menos na época que eu frequentava os bancos escolares, muito se falava sobre o pesar e o sofrimento a que os negros eram submetidos. No entanto os movimentos de resistência, que percorrem toda a história brasileira, desde o início da colonização, eram explanados de forma pra lá de superficial. Os negros fizeram muito mais do que sofrer. Arquitetaram alianças, armaram combates, utilizaram táticas de guerrilha, inspiraram-se em suas nações para instaurar modelos governamentais. Zumbi, Ganga Zumba, Ajahi, Zacimba Gaba, entre muitos outros. Essa última merece uma menção especial. Vinda de Cabinda, em 1690, dona de um espírito indomável, foi mandada para uma fazenda no Espírito Santo. Lá foi castigada, violentada pelo senhor, mas curiosamente este a manteve dentro da Casa Grande. Ela então planejou o envenenamento do seu “proprietário com o chamado “pó de amansa sinhô”. Esse veneno era dado aos poucos, para não atrair suspeitas. Envenenamento a longo prazo, feito de “pó de preguiça”, extraído da jararaca. E assim ele matava lentamente. Quando o senhor finalmente partiu dessa para melhor, Zacinda liderou uma fuga em grupo, formando um quilombo às margens do Riacho Doce. Seu trabalho incansável foi construir canoas e organizar ataques a aldeia de São Mateus, libertando os negros recém-chegados, tantos quanto fosse possível.

A história do Brasil sempre foi contada sob o ponto de vista institucional. Independência, República, Abolição, vieram de cima. Ainda que haja algum esforço no sentido de dar voz aos que foram apagados, nos falta uma história de fazeres coletivos, que revele aos brasileiros o seu papel diante dos acontecimentos. Antes que me acusem de estar metendo o bedelho numa história que teoricamente não pertence ao meu lugar de fala, digo que essas digressões nasceram do impacto provocado em mim pelo documentário AmarElo, do Emicida. Diante da arapuca em que fomos metidos em todos os sentidos no finado (espero) 2020, fomos confrontados com uma face nada bonita dessa Pindorama. Bolsonaro foi eleito pelo voto democrático, 57 milhões se sentiram representados por ele. Um país conservador, punitivista, e que o ódio ao diferente se mostra em todo seu terrível esplendor. E por favor, não se digam surpresos. Lembrem que somos o quinto país do mundo que mais mata mulheres, o primeiro em assassinato de lgbts no planeta, a cada três pessoas assassinadas, não por acaso, duas são negras. E isso porque não chegamos nos povos originários, é preciso um texto só para dar a ideia da dimensão da tragédia.

E no meio desse festival de barbárie, concretizado por uma pilha de duzentos mil mortos, surge esse rapaz , nascido nas quebradas da maior cidade da América Latina, não escamoteando a realidade, mas nos lembrando de uma face que já havíamos esquecido. Um Brasil inteligente, criativo, original, antropofágico, tropicalista, trazendo para o presente todas as contribuições dos negros na formação da sociedade brasileira, no campo da música, da intelectualidade, sem perder de vista a crítica e, sobretudo, a RESISTÊNCIA.

Tudo fica mais rico quando se tem conhecimento que os versos de Belchior da música Sujeito de Sorte, que Emicida sampleia em AmarElo: ”Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro/Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro” é uma paráfrase de um repente de Zé Limeira, um negro, analfabeto, nascido em Tauá, sertão do Ceará, no fim do século XIX. Era conhecido como o “Poeta do Absurdo”, uma história riquíssima para ser contada em poucas linhas.

E foi assim, navegando nas histórias da intelectualidade negra e da Resistência, que me detive em Oswaldo de Camargo, um dos maiores intelectuais negros vivo, escritor, poeta e ativista de peso. Nascido no interior de São Paulo, filho de lavradores, foi para um seminário onde adquiriu vasta cultura, além de formação musical (toca piano). Numa das entrevistas ele fala sobre o sentimento que permeia sua obra: A solidão. Sentimento definitivamente marcado por ser o único negro na adolescência em meio a 35 alunos. Voltamos a Nelson Rodrigues.

Oswaldo conheceu vários integrantes da Imprensa Negra dos anos 20 e 30 e é um dos estudiosos desse momento. Eram jornais escritos por negros, para negros, reivindicando um melhor posicionamento na sociedade. Entre esses jornais está o Getulino, o Paladino dos Homens Pretos, de 1923, que era publicado em Campinas, interior de São Paulo.

Como eu sempre digo, a vida é uma novela. Para quem não sabe, esse homem que enfrenta o racismo há décadas sem nunca se calar ou baixar a cabeça vem a ser o pai do Sergio Camargo, sim, o da Fundação Palmares. Aquele que diz que não existe racismo no Brasil e que o movimento negro é vitimista. O que vocês não contavam é com essa informação, que foi o fio condutor para que eu soubesse da história da imprensa negra do interior de São Paulo:  vocês se lembram do bisavô alemão do Bozo, que ele insiste em falar que lutou ao lado do Hitler, mesmo com as datas não batendo? Eis a verdade dos fatos. O Sr. Carl Hintze, natural de Hamburgo, estabelecido em Campinas, era vendedor de anúncios e assinaturas, possivelmente simpatizante da causa da luta contra o racismo, pelo que pude apurar, do Jornal O Getulino. Taí a prova de que nem sempre o fruto cai perto da árvore. E de que D’us é um roteirista que capricha no plot twist.