Em um dos mais estarrecedores episódios testemunhados por este autor, nesta semana o presidente Donald Trump foi exposto em uma mais que constrangedora gravação de ligação telefônica com o secretário de estado do estado da Geórgia, nos EUA, onde tentava convencê-lo sob os mais nefastos argumentos a “arrumar” 11780 votos a favor dele, de modo que, usando de “pessoas dotadas de vontade de resolver o problema, e como excelente advogado que é”, providenciasse uma fraude eleitoral que lhe fosse favorável.
Esta iniciativa, se é tão surpreendente enquanto atitude de um agente de estado, em absoluto não surpreende quem conhece a vida íntima das empresas privadas, estas tão protegidas por legislações que garantem o sigilo de negócios, a privacidade de pessoas físicas e jurídicas, o sigilo bancário, telefônico, eletrônico, e onde os trituradores de papel devolvem a verdade à poeira cósmica.
Se algo de bom pode sair do episódio é a clara e cristalina leitura do que é a vida cotidiana nos intestinos das grandes corporações das quais Trump é um perfeito representante, seja do ponto de vista técnico, ético e comportamental como político. Em síntese, o episódio revela uma verdade totalmente arraigada nessas instituições que viram na candidatura de Trump a sua maior oportunidade de tomada do estado que talvez o mundo já tenha presenciado.
Mas nada disso seria suficiente para os agentes de poder econômico e poder de fato que irromperam no cenário Reagan/Tatcher, que derrotados politicamente em alguns contextos europeus e sulamericanos foram levados à radicalização por um novo projeto de poder, este já passando distante do campo democrático tradicional.
Talvez pelo sucesso da democratização da internet e da informação, pelo qual maiores parcelas da sociedade tornaram-se conscientes das ameaças do neoliberalismo, os agentes do poder passaram a adotar uma nova estratégia, desta vez mais profunda, cruel, vingativa e perversa, pela qual agiriam para desorganizar os sistemas de informação (e formação) através da propagação persistente e intensa das fake news e das teorias conspiratórias com o claro objetivo de corromper a linguagem, o senso de realidade, de ciência, de democracia e de cultura institucional de modo a atingir em cheio a maior força de estabilidade das sociedades: os laços de confiança entre os indivíduos e entre os indivíduos e as instituições políticas, sociais, científicas e culturais (se é que podemos segmentá-las desta forma).
Ainda na agenda estadunidense, hoje novamente agudizada pelos choques entre fascistas e as forças de segurança e representação no Congresso (Capitólio), vimos hoje novamente a resultante dessas rupturas de laços de confiança daquela sociedade, tragicamente capitaneada pelo líder da nação ainda no exercício do cargo, o que expos à vergonha mundial a nação tida como a mais poderosa da Terra.
Não é implausível que de alguma forma esses fenômenos se reproduzam no Brasil em futuro próximo, dado que diversos ensaios de movimentos semelhantes já foram levados a cabo, não obstante a ação incisiva de alguns agentes de algumas instituições democráticas brasileiras que ainda operam no campo da razão e da lei.
O mais importante e sensível no momento e que se apreenda, de uma vez por todas, a ideia de que existe uma agenda do caos em operação e progresso no mundo, e que as instituições correm real perigo. A vitória de Biden nos EUA e uma eventual derrota de Bolsonaro em 2022 (ou antes) não trará soluções pelos fatos em si mesmos. É fundamental uma agenda sociopolítica especificamente desenhada e executada como contraposição à agenda de rupturas que fundamenta todo o processo que levou Trump e Bolsonaro ao poder (e ao Brexit na Inglaterra) e que ainda permanecerá arraigada profundamente à realidade visível nos planos mais imediatos da realidade.
Tempos difíceis e imprevisíveis pela frente.